A principal providência a ser tomada em materia de segurança pública, capaz de ter uma influência positiva sistêmica, é instituir a dedicação exclusiva e acabar com a escala de serviço das polícias.
Numa situação altamente complexa é importante definir o nó górdio a ser cortado, o elemento prioritário capaz de alavancar uma nova dinâmica. Há dezenas de coisas a serem feitas em relação a nossa crise de segurança que demanda, certamente, uma politerapia multidisciplinar. Há aspectos econômico-sociais, culturais, urbanísticos e até espirituais a serem considerados, há abundante literatura e palpitaria sobre tudo isso. Mas o “x” do problema que proponho enfrentar é a questão da (falta de) dedicação exclusiva nas polícias.
A escala de serviço de 24 horas de plantão por 48 ou 72 de folga, embora profundamente enraizada na cultura funcional vigente, é uma aberração. O trabalho do policial civil e militar é descontínuo fugindo a uma rotina que favoreceria um melhor enquadramento e disciplina, propiciando, na esmagadora maioria dos casos, uma dupla dedicação, com uma segunda atividade profissional que, com freqüência, torna-se predominante em termos de retorno econômico e investimento de energias.
Esse segundo emprego é, freqüentemente, pouco compatível com a prioridade à segurança pública –pode, objetivamente, nutrir-se de sua precariedade- e, no caso da “banda podre”, o tempo de folga é dedicado às articulações criminosas. Não é fortuito que quase 70% das mortes de policiais se dêem em dias de folga.
As vantagens de um regime de dedicação exclusiva saltam aos olhos: um aumento imediato de contingente, um controle muito maior da instituição sobre o cotidiano de seus quadros, uma maior concentração de energias, continuidade no trabalho investigatório, mais especialização. Recentemente estive em Bogotá onde a criminalidade violenta foi reduzida em 50% em uma década. A Policia Nacional dispõe de 16 mil homens, com dedicação exclusiva. Ocupam efetivamente o território: estão em toda parte patrulhando a pé, em grupos de três com fuzil metralhadora e um bom sistema de comunicação.
Bogotá, com sete milhões de habitantes, é um pouco maior que o Rio. Aqui dos 38 mil policias militares, quantos estão efetivamente na rua todos os dias ? Além das folgas é preciso contar a quantidade impressionante de policiais, dentre os mais adestrados, cedidos para outros órgãos e instituições --e que, freqüentemente, acabam sendo privilegiados nas promoções-- É provável que, na realidade, menos de um quarto do efetivo esteja disponível.
Nos manuais de contra-insurgência recomenda-se, para um controle territorial eficaz, uma relação entre forças de segurança e população de 20 para cada mil. Por esse critério teríamos que ter 120 mil membros de forças de segurança atuando de forma planejada e coordenada no Rio. Sinto dizer mas vivemos uma situação insurrecional “de fato” a partir do momento em que se quebrou o monopólio das Forças Armadas sobre o armamento de guerra e passou a existir o controle territorial de favelas por parte de bandos armados que agora ampliam seu poder ao comércio dos bairros vizinhos e tornam cada vez mais inseguras as vias expressas.
A circunstãncia de ser uma situação insurrecional não-ideológica, sem objetivos aparentes de poder --de fato já o tomaram, onde lhes interessa-- não altera a essência do fenômeno. De fato, torna mais difícil sua erradicação pois é economicamente cevado pela droga ilegal –provedora de lucro certo— e pela difusão de uma sub-cultura que exalta e realimenta seus efetivos efêmeros mais constantes.
A eventual instituição da dedicação exclusiva tem dois grandes problemas, o orçamentário: terão que ser pagos bons salários e o cultural-corporativista: a escala de serviço representa hoje hábito arraigado, modo de vida. As duas questões estão relacionadas: se a sociedade exige uma boa polícia deve entender que ela é cara. Quanto ao hábito, vejo muitos policias favoráveis à mudança e penso que poderia haver uma fase de transição com coexistência dos dois regimes mas, claramente, um favorecimento em termos salariais, de promoções, cursos, de financiamento de casa própria, aposentadoria, etc... aos que optassem pela dedicação exclusiva.
Há muitas outras providências: uma corregedoria realmente independente e eficaz, leis mais duras, o reforço do policiamento comunitário, melhorias técnicas de todo tipo, absorção pela Força Nacional dos militares adestrados que, todo ano, deixam os paraquedistas, fuzileiros e forças especiais com risco de serem captados pelo tráfico, progamas assistencias focados em adolescentes em situação de risco, etc...
Mas, o nó górdio a ser cortado é esse da profissão policial ser tratada, institucionalmente, como “bico”.