A porta do veículo se abre e um soldado corre, debaixo da mira dos criminosos, para liberar a criança. A tropa agora avança com sede de justiça, varrendo as vielas dos morros em busca dos criminosos. A justiça lhes é servida com o sangue quente da indignação.
Não é isso que a teoria abstrata da justiça propõe. Ela determina que os criminosos sejam presos e conduzidos até um tribunal, onde juízes imparciais, movidos por ritos protocolares e burocráticos, determinarão sentenças de acordo com critérios codificados por legisladores. Nenhum deles, legislador ou juiz, subiu a favela ou viu a criança amarrada no trilho. Todos andam em carros blindados e cercados de seguranças.
Legisladores fazem as leis. Juízes as aplicam. Qual a conexão dessas leis com a realidade ? |
Como pode o soldado que libertou a criança e enfrentou os monstros morais entender essa justiça ritualizada, demorada e impessoal ? Como exigir serenidade e equilíbrio diante de uma criança de três anos amarrada sob o sol ? Essas não são questões ingênuas ou simples. Para respondê-las é preciso entender não só a realidade da nossa segurança pública, mas também a visão equivocada e distorcida desta realidade que tem servido como base para a formulação de políticas públicas destinadas à lata de lixo da história.
Pergunta: qual é a polícia que queremos ?
Resposta: queremos um policial com a coragem do Rambo, a perícia de um Robocop, a capacidade de reflexão de filósofos, o conhecimento de um jurista e o equilíbrio de um monge. Ele deve ser capaz de abstrair-se da podridão violenta que o cerca e agir com o padrão moral dos santos.
Não vai rolar.
O policial brasileiro da vida real tem origem humilde e pouca formação intelectual. Recebe salário incompatível com o risco e importância do seu trabalho, e insuficiente para sua manutenção. Por isso tem um segundo emprego, que lhe rouba o descanso e a concentração em sua missão de policial. Teve pouco treinamento para a função que exerce, e, na maioria dos casos, jamais receberá apoio em momentos de crise. O seu trabalho é lidar com o lado podre da sociedade. As escolhas que tem que fazer são complexas.
Nossa polícia é associada pela população a um aparato repressivo a serviço de um poder ilegítimo. Vivemos em uma sociedade que passou do jugo colonial para as mãos da política café com leite da Republica Velha, e daí para o revezamento de ditaduras e fracas democracias desde 1930. O monopólio da violência pelo Estado serviu tradicionalmente a fins políticos e de repressão. O Estado brasileiro, capturado pelas oligarquias e colocado a serviço de seus interesses patrimoniais, nunca teve a legitimidade de ser uma construção da sociedade a serviço de todos. Por isso a polícia é coisa ruim. Está no sangue do brasileiro. Mesmo quando não deve nada, ele teme o homem fardado, a visão da viatura.
Nossa polícia é associada pela população a um aparato repressivo a serviço de um poder ilegítimo. Vivemos em uma sociedade que passou do jugo colonial para as mãos da política café com leite da Republica Velha, e daí para o revezamento de ditaduras e fracas democracias desde 1930. O monopólio da violência pelo Estado serviu tradicionalmente a fins políticos e de repressão. O Estado brasileiro, capturado pelas oligarquias e colocado a serviço de seus interesses patrimoniais, nunca teve a legitimidade de ser uma construção da sociedade a serviço de todos. Por isso a polícia é coisa ruim. Está no sangue do brasileiro. Mesmo quando não deve nada, ele teme o homem fardado, a visão da viatura.
Durante décadas o imaginário carioca tratou o bandido como o rebelde, o revolucionário, que resiste às pressões do sistema (vejam a obra de Hélio Oiticica sobre o bandido Cara de Cavalo). No Rio de Janeiro, a ex-capital da República, centro de conchavos e arranjos, a lei que vale é a da sobrevivência, do convívio diário com o jogo do bicho, com a corrupção pequena dos guardas de transito. O regime de 64 forneceu a justificativa final para a relativização da criminalidade: o crime nada mais é que a justa reação à concentração corrupta do poder nas mãos do Estado. Os bandidos escolheram esse caminho porque são revolucionários ou porque são pobres, herdeiros das injustiças do passado colonial de um país que foi o último do mundo a abolir oficialmente a escravidão.
O pensamento Marxista ainda domina a posição da academia brasileira sobre segurança pública, automaticamente classificando criminosos como vítimas indefesas de um processo histórico ou como a vanguarda revolucionária de uma nova ordem social. Marx aponta o dedo para os pobres e diz que classe e posição social lhes determinam a consciência - e esse fatalismo econômico não dá ao cidadão humilde – ao favelado, principalmente - nenhum outro papel que o de pobre coitado, infantilizado e sem consciência de sua posição na sociedade, sempre precisando de um líder paternalista e carismático.
O determinismo marxista acadêmico e o emaranhado conceitual de teorias de psicologia social, história, antropologia e sociologia produzido pela academia resultou na impossibilidade de ações práticas contra o crime. O traficante é o produto de uma sociedade injusta e não tem responsabilidade por suas escolhas. O crime não é resultado de escolhas individuais mas culpa e responsabilidade da sociedade. Somos todos culpados.
Esse é o círculo vicioso em que nos colocam nossos especialistas: não se pode resolver o crime até que se resolva a injustiça social. E como isso é tarefa impossível, não se encontra um ponto de partida e todas as mãos permanecem atadas. Menos, é claro, as mãos dos criminosos que, não tendo lido Marx, continuam dominando seus territórios, massacrando inocentes e espalhando o medo permanente que caracteriza a vida do brasileiro (veja o post São Nove Horas e Acabo de Ver um Assalto).
O criminoso é o produto de uma sociedade injusta. Ele não tem responsabilidade por suas escolhas |
Esse é o círculo vicioso em que nos colocam nossos especialistas: não se pode resolver o crime até que se resolva a injustiça social. E como isso é tarefa impossível, não se encontra um ponto de partida e todas as mãos permanecem atadas. Menos, é claro, as mãos dos criminosos que, não tendo lido Marx, continuam dominando seus territórios, massacrando inocentes e espalhando o medo permanente que caracteriza a vida do brasileiro (veja o post São Nove Horas e Acabo de Ver um Assalto).
Mas há esperança.
A prova é o lançamento de A Ponta da Lança, livro dos professores da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas, Marco Tulio Zanini e Carmen Migueles e de Marcio Colmerauer, ex-Subsecretário de Segurança do Rio de Janeiro. Em busca de explicações para excelência de unidades policiais como o BOPE o livro mapeia o caminho percorrido pela insegurança do Rio até os dias de hoje, expõe os equívocos da gestão da segurança pública e as condições precárias da atividade policial.
No centro do dilema apresentado por A Ponta da Lança está a crença de que é possível ter um Estado forte, solucionador de todos os problemas, quando os próprios indivíduos que formam esse Estado são considerados incompetentes:
“A inércia está baseada no seguinte dilema: os indivíduos são fracos, desempoderados e incapazes de escolhas maduras, portanto não podem ser punidos por suas fraquezas. O Estado, portanto, precisa agir. Mas o Estado é formado por esses mesmos indivíduos, mas que na posição de poder deveriam ter vontade política para resolver os problemas. Caso se fale em reduzir o poder do Estado (o que, na realidade, significa reduzir o poder desses indivíduos de apoderar-se da coisa pública) há a crítica de uma pretensa intenção neoliberal. Se falarmos em aumentar o poder do Estado, caímos no aumento dos espaços de apropriação privada da coisa pública, do aparelhamento e do desperdício de recursos em ações pouco efetivas ou de difícil gestão”
"Presos ao falso dilema Estado Forte versus Estado Fraco", apontam Zanini, Migueles e Colmerauer, "não parecemos capazes de evoluir para a discussão do Estado necessário, eficaz e democrático".
Vítimas da sociedade ou vanguarda revolucionária ?
Arpoador, Rio de Janeiro, Março de 2014
O excesso de teorias impede a ação concreta, e leva a uma sociedade indolente e fatalista, em busca de um salvador da pátria. Os partidos políticos são incapazes de mobilizar a sociedade em coalizões amparadas em princípios e valores, o único caminho para a solução de problemas complexos como o do crime em uma sociedade democrática. O Estado é uma ilha, isolado da “massa de pobres coitados, fracos e dependentes do Estado”.
"Sobre esse Estado isolado", continuam os autores, "incidem demandas desordenadas dos mais variados segmentos sociais, todos demandando direitos sem obrigações sociais correspondentes". Não existe hierarquização das demandas; tudo é urgente e deve ser feito agora. "Aliás, a noção de limite de recursos públicos é a mais rejeitada pela população, que acredita que por pressão ou acusação política os resultados serão atingidos". Me veio à mente uma senhora que frequentava as reuniões da Associação de Moradores do meu bairro, e que exigia um PM em cada esquina.Desperdício de recursos públicos foi, essencialmente, o tema do meu post Eu Quase Falei Mal do Eike Batista.
A EBAPE tem voltado suas baterias acadêmicas para a questão da segurança pública de uma forma original, lúcida e instigante, livre das amarras enviesadas do Marxismo. O verdadeiro combate ao crime começa pela educação e pela formação de gestores públicos e lideranças políticas informadas e esclarecidas. Está na hora de abandonar o hedonismo, a autopiedade e a camisa de força ideológica que nos trouxeram até a beira do abismo.
Assim como a criança amarrada aos trilhos, o brasileiro precisa ser libertado do crime. Ler A Ponta da Lança é um excelente começo.
ZANNI, M.T.; MIGUELES, C.; COLMERAUER;M. A Ponta da Lança: Intangíveis em Equipes de Alto Desempenho. Campus, Rio de Janeiro, 2014.