Porque o Brasil Odeia a Copa do Mundo (e porque isso pode ser muito bom)

Nenhum outro país ama o futebol mais do que o nosso. Paramos a nação para ver a seleção jogar. Nenhum outro país foi pentacampeão. Os jogadores de futebol são nossos únicos heróis nacionais.Então porque os brasileiros demonstram tão pouco entusiasmo - e até aborrecimento - justo quando a Copa vai acontecer em nosso próprio país ?

A resposta rápida é que na última década o Brasil gastou 10 bilhões de reais em saneamento básico - isso em um país onde mais de um terço das casas não tem esgoto ou água encanada - ao mesmo tempo em que vai gastar mais de R$ 26 bilhões com a Copa do Mundo. Só os estádios vão consumir mais de R$ 7 bilhões.  

Vivemos sob um Estado que perdeu o contato com seus cidadãos, e que é controlado e explorado por um grupo formado por políticos corruptos, burocratas poderosos e empresários sem escrúpulos que vivem de subsídios e contratos fraudados.

É um Estado incompetente em suas funções mais básicas. O poder Executivo não consegue planejar ou executar direito, nem garantir ao cidadão direitos básicos como vida e propriedade. O poder Legislativo é um dos menos eficientes e mais caros do mundo. O Judiciário prioriza seus próprios interesses e vive imerso em rituais ultrapassados, enquanto a população espera por milhares de processos sem solução.

Exemplo número 1: o orçamento inicial da Cidade da Música no Rio de Janeiro, construída para abrigar a Orquestra Sinfônica, era de R$ 80 milhões. O custo final ultrapassou R$ 400 milhões.

Exemplo número 2: um grupo de juízes de um Tribunal estadual que foram fazer um curso de segurança nos Estados Unidos, como diária, um valor superior a R$ 7 mil reais. Por dia.

Exemplo 3: embora o Brasil tenha um dos mais altos índices de homicídio do mundo (cinquenta mil pessoas são assassinadas todos os anos) as Câmaras de Vereadores do Rio de Janeiro e São Paulo encontram tempo para aprovar leis como a que obriga pescadores de costões rochosos a usar colete salva-vidas com apito, a que proíbe bonés em bancos e a que determina o tamanho oficial de mesas de sinuca de botecos.

Os iPhones e Play-Stations mais caros no mundo são vendidos no Brasil porque somos o país mais fechado ao comércio externo. Nossa carga tributária - 42% do PIB - é similar à de países desenvolvidos, mas, ao contrário do que ocorre por lá, o cidadão brasileiro paga por segurança privada, escolas particulares e planos de saúde porque os serviços oferecidos pelo Estado são inaceitáveis. Nossas calçadas e estradas são cheias de armadilhas. Nossos aeroportos são caóticos. Nunca ganhamos um prêmio Nobel

Todos os nossos partidos políticos são de esquerda, e todos usam as mesmas táticas populistas e paternalistas com o único objetivo de ganhar a próxima eleição e conquistar mais cargos na máquina pública. Tudo gira em torno de contratos, concessões públicas e obras. Artistas, intelectuais e boa parte da imprensa vivem de subsídios governamentais, emudecendo qualquer crítica ao Governo, à exceção de algumas bravas almas.

O brasileiro se sente roubado de sua cidadania cada vez que abre um jornal. Desejamos mudanças profundas e permanentes, mas não sabemos como começar. As manifestações que varreram o país no ano passado acabaram dominadas por aparelhos sindicalistas, black blocks e outras organizações políticas suspeitas, e perderam significado.

Nos sentimos presos em um atoleiro pesado de futebol, carnaval e samba. Tememos pelo futuro de nossos filhos. Nossos líderes não nos ajudarão. Nos últimos vinte anos nosso PIB per capita cresceu 38% em termos reais. Nesse ritmo levaremos 55 anos para alcançar a Espanha e 90 anos para alcançar os Estados Unidos - se eles ficassem parados.

Portanto o fato de tantos brasileiros não ligarem para a Copa do Mundo pode ser uma coisa boa. É possível que estejamos finalmente acordando desse pesado sono tropical no qual caímos enquanto países como a Coréia do Sul ou o Chile passaram à nossa frente.

Poderemos nos tornar uma nação de verdade, na qual a preocupação com nossos filhos seja mais forte que a paixão por um jogo. Levará décadas, com certeza, mas a semente foi plantada.

Quando você escutar dizer que os brasileiros detestam esta Copa, é isso que está acontecendo. Estamos crescendo, cuidando de coisas mais importantes. Talvez nunca mais ganhemos uma Copa do Mundo.

É possível até que, finalmente, ganhemos um prêmio Nobel. 

Quem sabe ?

(clique aqui para a versão em inglês desse artigo)

Why Brazil Hates the World Cup

No country loves soccer more than Brazil does. The entire nation grinds to a halt to watch the national team play. We are the only country to have won the Cup five times. Soccer players are our heroes.

Then why are Brazilians feeling so unenthusiastic - and even resentful - toward the 2014 World Cup, to take place in less than a month in their own country ?

The short answer is that in the last decade Brazil has spent 10 billion reais in basic sanitation - this in a country where over a third of the homes do not have sewage collection or clean water - while the planned expenses for the World Cup are over 26 billion reais. The price tag for refurbishing or building stadiums alone is 7 billion reais. And these are only estimates, sure to be exceeded.

The long answer is no less revealing. It involves a State that has lost touch with its citizens and which is run, supported and milked by a ubiquitous group of corrupt politicians, power-hungry bureaucrats and private-sector oligarchs who live off government subsidies and rigged contracts.

This is a State lacking basic management competencies at all levels. Its executive branch can’t plan or execute properly, and cannot guarantee basic rights such as life and property. The legislative branch is one of the less productive and most costly in the world. The courts are self-centered, hampered by outdated rituals and clogged with hundreds of thousands of lawsuits waiting forever for resolution.

Exhibit 1: the initial budget for the City of Music, a modern-looking building in the Barra neighborhood of Rio de Janeiro, built to house the Symphonic Orchestra, was R$ 80 million. It ended up costing R$400 million.

Exhibit 2: a group of judges from a state court was sent for a 15-day safety and security training in Florida and paid a daily allowance of 3,300 dollars each.

Exhibit 3: while Brazil has one of highest homicide rates in the world (50,000 people are murdered each year) the city councils of Rio de Janeiro and São Paulo have been busy approving key legislation such as a prohibition to use hats in banks, the mandatory use of flotation devices by beach fishermen or the adoption of official-size snooker tables in bars.

Our shops sell the most expensive iPhones and Play Stations in the world because we rank last in openness to foreign trade. Our tax load - 42% of GDP - is similar to that of developed countries, but we pay for private security, private schools and private health care because the services provided by the State are unacceptable. Our sidewalks and roads are traps. Our airports are chaotic. We have never won a Nobel prize.

All our political parties declare themselves on the left, and they all make the same unlimited use of populist, paternalistic and short-sighted politics whose sole aim is to win the next election and appoint supporters to government jobs. Competency is never a requirement. The name of the game is contracts, concessions, public works. Artists, intellectuals and media groups live off incentives and subsidies provided by the State, effectively muting any meaningful criticism, save for a few brave souls.

Brazilians feel robbed, defrauded of their citizenship every time we open a newspaper. We know we need deep, long-lasting change. Last year a wave of spontaneous demonstrations swept the country, but they were taken over by organized leftist labor and other political operatives, and died away.

We feel trapped in a thick morass of soccer, carnival and samba. We fear for the future of our children. Our leaders - with descriptive names like “little boy”, “big foot”, “squid”” - won’t help. One of the best known political slogans, coined to describe the paulista politician Adhemar de Barros, said: “he steals, but he does stuff”. That sums it all up.

In the last 20 years our GDP per person grew 38% in real terms. At this rate it will take us 55 years to reach Spain and 90 years to reach the USA - if they stood still.

So the fact that many Brazilians are unaffected by the World Cup might be a good thing. We may be finally waking up from the deep tropical slumber we fell into while countries like South Korea and Chile speeded ahead.

We may become a real nation, whose concern for its own children outweighs its passion for a ball game. It will probably take decades, but the seed has been sown.

When you hear Brazilians say they hate this Cup, that’s what’s going on. We are growing up. We are learning, moving on to more important things. Perhaps we will never again win a World Cup.

Then we may even get a Nobel prize, finally. Who knows ?

(Here is the Portuguese version of this article)






A Ponta da Lança: Os caminhos da insegurança pública

Rio de Janeiro, tarde de verão. A tropa de elite da polícia prepara-se para entrar em uma comunidade carente. O Caveirão avança até certo ponto e para diante da cena de horror: em um dos trilhos fincados no meio da rua está amarrada uma criança de três anos, usada como escudo vivo pelos traficantes.

A porta do veículo se abre e um soldado corre, debaixo da mira dos criminosos, para liberar a criança. A tropa agora avança com sede de justiça, varrendo as vielas dos morros em busca dos criminosos. A justiça lhes é servida com o sangue quente da indignação.

Não é isso que a teoria abstrata da justiça propõe. Ela determina que os criminosos sejam presos e conduzidos até um tribunal, onde juízes imparciais, movidos por ritos protocolares e burocráticos, determinarão sentenças de acordo com critérios codificados por legisladores. Nenhum deles, legislador ou juiz, subiu a favela ou viu a criança amarrada no trilho. Todos andam em carros blindados e cercados de seguranças.

Legisladores fazem as leis. Juízes as aplicam.
Qual a conexão dessas leis com a realidade ?

Como pode o soldado que libertou a criança e enfrentou os monstros morais entender essa justiça ritualizada, demorada e impessoal ? Como exigir serenidade e equilíbrio diante de uma criança de três anos amarrada sob o sol ? Essas não são questões ingênuas ou simples. Para respondê-las é preciso entender não só a realidade da nossa segurança pública, mas também a visão equivocada e distorcida desta realidade que tem servido como base para a formulação de políticas públicas destinadas à lata de lixo da história.

Pergunta: qual é a polícia que queremos ?

Resposta: queremos um policial com a coragem do Rambo, a perícia de um Robocop, a capacidade de reflexão de filósofos, o conhecimento de um jurista e o equilíbrio de um monge. Ele deve ser capaz de abstrair-se da podridão violenta que o cerca e agir com o padrão moral dos santos. 

Não vai rolar.

O policial brasileiro da vida real tem origem humilde e pouca formação intelectual. Recebe salário incompatível com o risco e importância do seu trabalho, e insuficiente para sua manutenção. Por isso tem um segundo emprego, que lhe rouba o descanso e a concentração em sua missão de policial. Teve pouco treinamento para a função que exerce, e, na maioria dos casos, jamais receberá apoio em momentos de crise. O seu trabalho é lidar com o lado podre da sociedade. As escolhas que tem que fazer são complexas.

Nossa polícia é associada pela população a um aparato repressivo a serviço de um poder ilegítimo. Vivemos em uma sociedade que passou do jugo colonial para as mãos da política café com leite da Republica Velha, e daí para o revezamento de ditaduras e fracas democracias desde 1930. O monopólio da violência pelo Estado serviu tradicionalmente a fins políticos e de repressão. O Estado brasileiro, capturado pelas oligarquias e colocado a serviço de seus interesses patrimoniais, nunca teve a legitimidade de ser uma construção da sociedade a serviço de todos. Por isso a polícia é coisa ruim. Está no sangue do brasileiro. Mesmo quando não deve nada, ele teme o homem fardado, a visão da viatura. 


Nossa polícia é associada pela população a um aparato repressivo a serviço de um poder ilegítimo 

Durante décadas o imaginário carioca tratou o bandido como o rebelde, o revolucionário, que resiste às pressões do sistema (vejam a obra de Hélio Oiticica sobre o bandido Cara de Cavalo). No Rio de Janeiro, a ex-capital da República, centro de conchavos e arranjos, a lei que vale é a da sobrevivência, do convívio diário com o jogo do bicho, com a corrupção pequena dos guardas de transito. O regime de 64 forneceu a justificativa final para a relativização da criminalidade: o crime nada mais é que a justa reação à concentração corrupta do poder nas mãos do Estado. Os bandidos escolheram esse caminho porque são revolucionários ou porque são pobres, herdeiros das injustiças do passado colonial de um país que foi o último do mundo a abolir oficialmente a escravidão.

Glorificação da marginalidade. 
Obra de Hélio Oiticica sobre 
o bandido Cara de Cavalo

O pensamento Marxista ainda domina a posição da academia brasileira sobre segurança pública, automaticamente classificando criminosos como vítimas indefesas de um processo histórico ou como a vanguarda revolucionária de uma nova ordem social. Marx aponta o dedo para os pobres e diz que classe e posição social lhes determinam a consciência - e esse fatalismo econômico não dá ao cidadão humilde – ao favelado, principalmente -  nenhum outro papel que o de pobre coitado, infantilizado e sem consciência de sua posição na sociedade, sempre precisando de um líder paternalista e carismático.

O  determinismo marxista acadêmico e o emaranhado conceitual de teorias de psicologia social, história, antropologia e sociologia produzido pela academia resultou na impossibilidade de ações práticas contra o crime. O traficante é o produto de uma sociedade injusta e não tem responsabilidade por suas escolhas. O crime não é resultado de escolhas individuais mas culpa e responsabilidade da sociedade. Somos todos culpados. 


O criminoso é o produto de
 uma sociedade injusta. Ele
não tem responsabilidade
por suas escolhas
 

Esse é o círculo vicioso em que nos colocam nossos especialistas: não se pode resolver o crime até que se resolva a injustiça social. E como isso é tarefa impossível, não se encontra um ponto de partida e todas as mãos permanecem atadas. Menos, é claro, as mãos dos criminosos que, não tendo lido Marx, continuam dominando seus territórios, massacrando inocentes  e espalhando o medo permanente que caracteriza a vida do brasileiro (veja o post São Nove Horas e Acabo de Ver um Assalto).

Mas há esperança.

A prova é o lançamento de A Ponta da Lança, livro dos professores da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas, Marco Tulio Zanini e Carmen Migueles e de Marcio Colmerauer, ex-Subsecretário de Segurança do Rio de Janeiro. Em busca de explicações para excelência de unidades policiais como o BOPE o livro mapeia o caminho percorrido pela insegurança do Rio até os dias de hoje, expõe os equívocos da gestão da segurança pública e as condições precárias da atividade policial.

No centro do dilema apresentado por A Ponta da Lança está a crença de que é possível ter um Estado forte, solucionador de todos os problemas, quando os próprios indivíduos que formam esse Estado são considerados incompetentes:

“A inércia está baseada no seguinte dilema: os indivíduos são fracos, desempoderados e incapazes de escolhas maduras, portanto não podem ser punidos por suas fraquezas. O Estado, portanto, precisa agir. Mas o Estado é formado por esses mesmos indivíduos, mas que na posição de poder deveriam ter vontade política para resolver os problemas. Caso se fale em reduzir o poder do Estado (o que, na realidade, significa reduzir o poder desses indivíduos de apoderar-se da coisa pública) há a crítica de uma pretensa intenção neoliberal. Se falarmos em aumentar o poder do Estado, caímos no aumento dos espaços de apropriação privada da coisa pública, do aparelhamento e do desperdício de recursos em ações pouco efetivas ou de difícil gestão”

"Presos ao falso dilema Estado Forte versus Estado Fraco", apontam Zanini, Migueles e Colmerauer, "não parecemos capazes de evoluir para a discussão do Estado necessário, eficaz e democrático".



Vítimas da sociedade ou vanguarda revolucionária ?
Arpoador, Rio de Janeiro, Março de 2014


O excesso de teorias impede a ação concreta, e leva a uma sociedade indolente e fatalista, em busca de um salvador da pátria. Os partidos políticos são incapazes de mobilizar a sociedade em coalizões amparadas em princípios e valores, o único caminho para a solução de problemas complexos como o do crime em uma sociedade democrática. O Estado é uma ilha, isolado da “massa de pobres coitados, fracos e dependentes do Estado”.

"Sobre esse Estado isolado", continuam os autores, "incidem demandas desordenadas dos mais variados segmentos sociais, todos demandando direitos sem obrigações sociais correspondentes". Não existe hierarquização das demandas; tudo é urgente e deve ser feito agora. "Aliás, a noção de limite de recursos públicos é a mais rejeitada pela população, que acredita que por pressão ou acusação política os resultados serão atingidos". Me veio à mente uma senhora que frequentava as reuniões da Associação de Moradores do meu bairro, e que exigia um PM em cada esquina.Desperdício de recursos públicos foi, essencialmente, o tema do meu post Eu Quase Falei Mal do Eike Batista.

A EBAPE tem voltado suas baterias acadêmicas para a questão da segurança pública de uma forma original, lúcida e instigante, livre das amarras enviesadas do Marxismo. O verdadeiro combate ao crime começa pela educação e pela formação de gestores públicos e lideranças políticas informadas e esclarecidas. Está na hora de abandonar o hedonismo, a autopiedade e a camisa de força ideológica que nos trouxeram até a beira do abismo.

Assim como a criança amarrada aos trilhos, o brasileiro precisa ser libertado do crime. Ler A Ponta da Lança é um excelente começo.

ZANNI, M.T.; MIGUELES, C.; COLMERAUER;M. A Ponta da Lança: Intangíveis em Equipes de Alto Desempenho. Campus, Rio de Janeiro, 2014.

O Cheiro de Maconha de Manhã

Tiroteios de armas pesadas interrompem o sono da minha família. O barulho vem do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana.  É a quinta vez esse mês. São traficantes protegendo seu território. É um negócio de alta lucratividade. É a Wall Street dos despossuídos.


Vou correr na praia de manhã e o cheiro de maconha invade minhas narinas e me enjôa. Morre aos 46 anos, de overdose de heroína, o ator Philip Seymour Hoffman. Um garoto é preso tentando assaltar uma senhora ao lado da minha casa, está transtornado. "Cheio de crack na cabeça", diz o policial. 

Uma conversa sobre drogas não pode começar sem que uma afirmação seja feita: a dependência de drogas é um mal terrível. Nenhum pai deseja esse destino para o seu filho. Em um mundo ideal as drogas não seriam usadas. 

Não vivemos em um mundo ideal.

A proibição de venda e uso legal de drogas - por melhor que tenha sido sua intenção original - resultou na explosão da criminalidade organizada no narcotráfico. A corrupção resultante contamina todos os níveis sociais. O lucros do tráfico sustentam a ditadura do crime em que vivemos. Em países como o México eles ameaçam a própria existência da nação. Os efeitos nefastos do narcotráfico já são, reconhecidamente, piores que os causados pelo uso de drogas.

O poder dos traficantes é resultado da ilegalidade da drogas. Ele corrompe agentes da lei, magistrados e legisladores. Proibir as drogas  mostrou-se uma péssima forma de combatê-las. Apesar do número de vidas perdidas, dos presídios superlotados e do alto custo de uma guerra sem fim, é muito fácil encontrar drogas em qualquer lugar. Quando os EUA tentaram proibir as bebidas alcoólicas o resultado foram violência e corrupção sem paralelo. A semelhança com a "Guerra às Drogas" atual é mais do que mera coincidência.

Existem substâncias legais cujo consumo traz prejuízos ao indivíduo e à sociedade. O álcool pode causar dependência grave. O tabaco, além da dependência, tem relação inquestionável com o câncer. Anfetaminas e benzodiazepínicos, medicamentos de uso comum e vendidos em grandes quantidades no Brasil, causam dependência e problemas similares aos causados pelas drogas. Todas essas substâncias são legais e submetidas a diferentes graus de controle. Assim como acontece com o álcool, muitas pessoas parecem capazes de usar drogas sem que isso as torne dependentes ou afete sua individualidade, saúde ou capacidade produtiva. Para outros a única alternativa é o consumo zero. Essa decisão não deveria ser do Estado, mas de cada um.

Não está claro qual o caminho a ser seguido. Mesmo nos países mais avançados o debate e as experiências continuam, sem conclusão definitiva. Entretanto, parece existir consenso sobre os seguintes pontos:

A dependência de drogas é uma tragédia pessoal que traz enormes prejuízos ao indivíduo e à sua família, e merece uma resposta adequada. É preciso que existam salvaguardas e mecanismos para regular a venda e o consumo de drogas e assistir a usuários que queiram se libertar da dependência. É fundamental também o esclarecimento através da educação sobre a devastação que as drogas podem causar, da mesma forma que se faz com o álcool e tabaco.

Tornar as drogas ilegais tornou o tráfico altamente lucrativo, gerando tamanha violência e corrupção que o remédio pode ter se tornado mais nefasto que a doença. A pior forma de lidar com o uso e a dependência de drogas é torná-los um caso de polícia. A demanda por drogas é forte o suficiente para gerar lucros que garantem a futilidade de quaisquer esforços de proibição.

Uso não é igual a dependência. Existem muitas pessoas que usam drogas sem se tornar dependentes. 

Uso não resulta em crime. A maior parte do crime associado às drogas é resultado do tráfico e não do uso em si.

Ainda não existe um modelo alternativo para lidar com as drogas que responda tanto ao problema da dependência quanto ao do narcotráfico. Nenhuma das soluções já adotadas no exterior, como áreas especiais para consumo de drogas ou legalização parcial do consumo, pode ser considerada um sucesso inquestionável. Só o tempo dirá.

É impossível prever todas as consequências de uma eventual descriminalização das drogas. O resultado positivo mais provável é uma redução drástica das atividades criminosas ligadas ao narcotráfico. Entretanto, é preciso admitir a probabilidade de que ocorra também um aumento do consumo no curto prazo (acompanhando ou não de aumento no número de dependentes). Da mesma forma, não podemos nos iludir quanto ao criminosos- boa parte dos envolvidos com o tráfico migrará para outras modalidades de crime. Precisamos nos preparar para isso.

Eu ensino aos meus filhos que alcóol e drogas são uma roleta russa: nunca se sabe o mal que podem causar, nunca se sabe quando cruzaremos a fronteira entre o uso recreativo e a dependência, e nem quando será disparado o gatilho de graves desequlíbrios mentais. O uso de drogas, fora de terapias, é um ato de desespero ou de hedonismo . Nunca me seduziu a estética chic da inteligentsia nacional de associar o apertar um back com sofisticação intelectual e inconformismo. Maconha pra mim sempre foi um cheiro enjoado e uma arma de sedução barata de quem tem pouco mais a oferecer.

Mas é preciso discutir o problema das drogas com coragem, separando a posição pessoal de cada um - aquilo que consideramos nosso padrão moral e ensinamos aos nossos filhos - do que faz sentido como política pública. 

Sem ingenuidade, mas também sem preconceito.

Ou ficaremos eternamente reféns do pessoal do fuzil



Malandro Demais Para Pouco Otário

A emoção que define a vida do brasileiro é o mêdo. Do assalto, do flanelinha, do golpe do sequestro por telefone, dos truques do Governo (seja de que partido for), do descaso dos prestadores de serviço monopolistas (tente cancelar uma linha de celular), dos exames não cobertos pelos planos, da malha fina, dos carros que não respeitam o sinal. Mêdo do desemprego, do futuro dos seus filhos, da hora da aposentadoria. Há sempre um motivo forte e próximo. 

É o bueiro que explode e pega fogo. É a marquise que cai em cima dos passantes, é o prédio que cai em cima das pessoas. É o motorista do ônibus que acelera quando estamos embarcando, é o motorista de táxi que dá o golpe do "você me deu uma nota de cinco reais" quando acabamos de pagar com uma nota de cinquenta.

Acordo no domingo e me deparo com uma cena de tregédia em frente de casa. Um motorista bêbado bate em alta velocidade atrás do caminhão de mudanças, decepa um braço e uma perna de um dos ajudantes que acaba morrendo, manda o outro para o hospital em estado grave. Estava bêbado, claro. Tão banal que nem deu notícia.

São os dois malandros, na porta da minha casa: um se abaixa e suja de graxa o sapato de idosos, o outro, mais à frente, aponta o sapato sujo, limpa e cobra 100 reais.

Basta morar algum tempo fora do país para perceber a carga pesada que aqui carregamos sem perceber. Estamos sempre de sobreaviso, sobressaltados. 

É malandro demais para pouco otário.


São Nove Horas e Acabo de Ver um Assalto


Saio para passear com minha filha nos ombros. São nove horas de uma noite de verão e a calçada ainda está cheia de cariocas e turistas. Compramos um sorvete, saímos por aí. Sem aviso, em nossa direção vem um sujeito com uma camisa de futebol e uma expressão de crueldade no rosto. Ele mal passa por nós e escuto do meu lado: “arrancou minha corrente”. A moça, com jeito de turista, mostra para a amiga as marcas dos dedos do ladrão impressas em vermelho no seu pescoço.

Isso aconteceu em Copacabana, no dia 5 de Janeiro de 2014.

Os gritos e a correria alertam para o perigo ao lado. Já não há tempo de correr com as crianças para segurança. Às mães - moças e senhoras que aproveitam o dia de sol na praia com seus filhos - não resta alternativa além de sacar os paus das barracas e assumir posição de combate para defender suas famílias.

Eles logo chegam: adolescentes em sua maioria, gritos espalhando terror, atacando banhistas e levando bolsas e carteiras. As mães se defendem como podem.

O verão medieval

Ao longo do dia muitas delas ainda lutariam por suas vidas no caminho de casa. Uma mãe foi seguida por uma dupla de garotos, e ouviu claramente um sugerindo ao outro o ataque: “vai nessa, ela está com um bebê”.

Isso aconteceu em Ipanema, no dia 15 de Novembro de 2013.

Estou na areia da praia, perto da água, com minha namorada. O comportamento de um homem ao lado me chama a atenção. Sentado na areia, de sunga, ele olha repetidamente para os lados e se aproxima da bolsa que um casal deixou em cima de uma toalha.

Nossos olhares se cruzam.

Ele é muito forte.

“Fica fora dessa”, é o aviso. “Eles são turistas. Fica fora ou sobra pra você”.

Engulo em seco. Estou sempre por aqui. Ele vai marcar minha cara. Procuro um policial com os olhos, disfarçando, não encontro. Nesse meio tempo ele avança sobre a bolsa, abre a carteira, leva dinheiro e documentos.

O casal retorna, se desespera. Eu sinto um nó no estômago que ainda não se desfez.

Isso aconteceu em Setembro de 1983.

O menino chegou no Rio de Janeiro há pouco mais de um mês e ainda está deslumbrado com a cidade. Agora caminha pela calçada no Flamengo, onde seus pais visitam amigos. Leva na mão uma nota de 5 cruzeiros, vai comprar uma revista em quadrinhos. Para na frente da banca e olha as revistas. A nota some da sua mão. Ele se vira a tempo de ver o moleque que a arrancou atravessando a rua, rindo. O menino volta sem a revista e sem coragem de contar o que aconteceu. Quarenta anos depois ele ainda tem a mania de levar o dinheiro embolado dentro da mão, protegido.


O menino era eu.

Isso aconteceu em Março de 1973.

Eu podia estar roubando. E estou
“Olha aí, é assalto”. As palavras do motorista do táxi me alertam e olho para fora, para a tarde iluminada de primavera em Copacabana. São 15:00. Aproveitando o sinal vermelho da Princesa Isabel um homem desceu da garupa de uma moto à nossa frente e abriu a porta do táxi parado ao lado do meu. O homem tem uma arma na mão. Vejo que ele espanca uma senhora e arranca uma sacola das mãos dela; depois retorna calmamente, sobe na moto, vai embora. O sinal abre; quando meu táxi passa ao lado do outro eu vejo a mulher chorando.

Isso aconteceu em Abril de 2012.

Homem de camisa azul dizendo ter uma pistola escondida, levando todo o meu dinheiro. Botafogo, 1998.

Garoto no canto da janela do carro gritando “vou estourar sua cabeça, seu f***, passa a carteira”. Avenida Atlantica, 1996.

Dois moleques em frente à subida do Cantagalo rendendo motoristas no sinal. 1999.

Invasão do prédio vizinho ao meu, assalto a um apartamento, reféns. Outubro de 2009.
E nesse final de semana de Janeiro de 2014 mais um tiroteio no morro do Pavão-Pavãozinho, o terceiro ou quarto esse mês, com barulho de tiros tão forte que corremos com as crianças para o corredor (estamos a quase um quilômetro do morro). Segundo o jornal policiais da UPP estavam em patrulha quando se depararam com criminosos armados que atiraram. Os policiais revidaram. Os bandidos conseguiram fugir e ninguém se feriu.

O único prejuízo foi o estilhaçamento do delírio coletivo no qual, por alguns anos, se misturaram aumentos milionários nos preços de imóveis, uma polícia dividida e uma justiça criminal alienada, impostos de primeiro mundo, políticos de terceiro e a ilusão de que é possível tratar criminosos violentos e onipresentes com incompetência, leniência e eufemismos.

Rolezinho, Rolezão: O Retrato de Um Pais Com Tempo a Perder

O Governo acaba de anunciar a criação do Bolsa Shopping. Não, sério. No rol dos direitos sagrados dos brasileiros acaba de ser incluído o direito a fazer baderna no shopping. É sério.

“Temos que fazer uma aproximação progressiva e com humildade para tentar entendê-los e manter um diálogo para que conquistem aquilo que desejam”, declarou o Ministro da Secretaria Geral da Presidência, a respeito dos rolezeiros.

O deputado Augusto Rei do Partido Socialista Social vai propor uma PEC garantindo a todo o brasileiro o direito a frequentar o shopping em companhia dos seus oito mil amigos mais queridos. “Essa é uma forma de expressão muito cara ao nosso povo”, afirmou o deputado, que também incluirá na sua proposta o estabelecimento de cotas para garantir “representatividade” entre os frequentadores dos centros comerciais.

“A reação aos rolezinhos tem uma dimensão preconceituosa”, disse o Advogado Geral da União. “As pessoas associam aquela correria nos shoppings com os arrastões na praia”.

A antrópologa e socióloga Julia McDonald lembrou que o brasileiro tem preconceito histórico contra os baderneiros, o que, a seu ver, é explicado pela "dialética da luta de classes em um contexto de sujeição histórica”. De acordo com a visão moderna e democrática, ainda segundo Júlia, não existem baderneiros nem criminosos e sim “indivíduos em risco social”. 

A CUT publicou texto na internet defendendo os rolezinhos. O Secretário de Juventude da entidade diz que “a reação de conservadores representa o medo das elites de ter seu espaço ameaçado pelos excluídos”.

Excluídos ocupando o espaço das elites. Só que não.
Está sendo formada no Congresso uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar denúncias de que olhares amedrontados de pais de família estariam incomodando os adolescentes baderneiros nos shoppings. “É bullying” afirma o representante do Coletivo Anônimo do Shopping Livre, que pleiteia o acesso “livre, geral, irrestrito e gratuito” a todas as lojas de grife. 

Nesta segunda dia 20 de janeiro, a Associação Brasileira de Lojistas de Shopping (cujos associados faturaram mais de R$ 114 bilhões em 2012) solicitou reunião com a Presidente do Brasil (oitava economia do mundo) para pedir ajuda para que os rolezinhos não sejam mais realizados nos centros comerciais do país.

Na Câmera de Vereadores de São Paulo entrou em discussão projeto que aumenta o IPTU de todos os shopping centers que não apresentarem documentação comprobatória de realização de pelo menos oito (8) rolezinhos por mês contendo, cada um, um mínimo de cinco (5) mil adolescentes. O projeto estenderá a mesma obrigação para hospitais, aeroportos e churrascarias rodízio.

Não. Sério.


(Esse artigo contém uma mistura de fatos verídicos e ficção, em diferentes parágrafos. Tente adivinhar o que é verdade e o que é invenção. Quem cometer mais de 2 erros ganha uma passagem pra Venezuela. Veja a resposta lá embaixo)





Parágrafos verdadeiros: 
(2), (4), (6) Jornal O Globo, 19 de Janeiro de 2014, e (8) site G1, 20 de Janeiro de 2014.



A Marina, o Eduardo e a Revolução dos Bichos

Em 2013 vivemos tempos memoráveis. Manifestações, Black Blocs, o gigante acordando. A ação do Google ultrapassando mil dólares, a da Petrobrás abaixo de 20 reais. E a Marina e o Eduardo se juntando para salvar o Brasil.

Há trinta e cinco anos vivíamos em uma ditadura, Marina ainda era uma criança, Eduardo vivia à sombra do avô Miguel Arraes e eu vendia adesivo do Henfil pela Anistia.

Sabíamos o que significava liberdade. O voto direto, sem intermediários. Escrever, como eu fiz, uma carta a O Globo protestando contra o resultado do Inquérito do Riocentro – e tremer de medo quando a carta acabou publicada na coluna do Fernando Sabino. Minha geração se perdeu entre os dilemas da juventude dos anos 80: censura, repressão, desemprego, crime, falta de grana.

 Carta a O Globo em 1981: aos 19 anos eu protestava
contra o Inquérito do Riocentro

Como muitos amigos eu fiz concurso público e acabei na Petrobras, que seria meu porto seguro com via direta para uma aposentadoria decente. Decepcionei-me. Houve um ano em que não tive nada para fazer; lia jornais e estudava inglês no expediente (ainda não existia a Internet). Vendi meu Chevette de terceira mão e fui atrás de um emprego no Banco Mundial, nos EUA. Enquanto me descobria adulto em Washington DC eu descobri também a liberdade econômica. Tudo era conveniente, fácil, barato.

Entrei em uma concessionária e saí dirigindo um Honda Civic do ano (1990), com todos os opcionais, por 11.200 dólares financiados em 5 anos a 2% ao ano. Viajar, comer em restaurantes, comprar roupas, livros e eletrônicos, mobiliar a casa – tudo ficou instantaneamente viável. Minha academia carioca custava o equivalente a 150 dólares mensais; a de Washington, muito melhor equipada, custava $40. Via os jovens americanos  recém-saídos da faculdade com bons empregos, carro do ano e casa própria, todas com aqueles gramados sem cerca que a gente via em filme e nos quais não acreditava. Era verdade.

Honda Civic DX 1990: completo, zero bala por 11.200 dólares
As prateleiras dos supermercados tinham 300 tipos de sabão em pó, o leite era vendido em galões, as castanhas de caju eram gigantes e baratas. Abundância, fartura, possibilidade de escolha. E o verdadeiro american-way-of-life que só experimenta quem se joga na América real. Os mutirões de ajuda mútua, a vigilância comunitária, as mães que ajudam a controlar o transito na saída das escolas. O imposto sobre imóveis que vai inteiro pra educação. E a tranquilidade para viver: Washington tinha a fama de lugar violento nos EUA, mas muita gente deixava a porta de casa destrancada para a faxineira entrar. Em cinco anos nunca tive medo, nunca soube de algum conhecido vítima de crime. Vivi sem sobressaltos.

E você podia morar onde quisesse: em Tucson, no interior do Arizona; em Boulder, Colorado, que é uma mistura de Búzios com Penedo; em Tamales, um entreposto de filme de bangue-bangue rodeado de estâncias e varrida pelo vento do norte da Califórnia. Qualquer lugar oferecia emprego e todas as conveniências da vida moderna.

A ficha caiu: liberdade verdadeira é também econômica. Se os únicos empregos bons são os públicos então você não é livre. Se você precisa mudar pra uma grande cidade como Sumpaulo pra ter serviços decentes, você não é livre. Se o preço que você paga por um automóvel depende dos burocratas e não da competição das montadoras, esse preço será um dos mais altos do mundo. Se o remédio que meu filho toma depende da permissão da ANVISA, eu sou eterno refém do Estado.

No Brasil nunca houve liberdade econômica, nem das ditaduras nem nos períodos democráticos. Quase a metade do que ganhamos é confiscado para financiar o estilo de vida da Nomenklatura brasileira, com suas cascatas de camarão, carros oficiais e aposentadorias douradas. Trabalhamos para alimentar o Estado e dependemos de suas benesses para sobreviver.
Tem preço sim: é a dependência eterna do Estado

Nunca tivemos nada parecido com um Google, uma Microsoft, um Warren Buffett. Nunca ganhamos um prêmio Nobel.

O que tivemos foram as manifestações, os Black Blocs, a Marina e o Eduardo. Os manifestantes pediram passagem de graça, pediram ônibus do governo. Para dependermos ainda mais do Estado. Para pagarmos ainda mais impostos. Para nos afundarmos ainda mais na Revolução dos Bichos: aquela onde todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros.

E a Marina e o Eduardo, que são agora a esperança do Brasil ? Vamos dar uma olhada em um trecho do manifesto do PSB, o partido deles:

Princípio VII – O objetivo do Partido, no terreno econômico é a transformação da estrutura da sociedade, incluída a gradual e progressiva socialização dos meios de produção, que procurará realizar na medida em que as condições do País a exigirem.

Tradução: a Marina e o Eduardo acham que tudo deve ser do Estado.

Deixa o gigante dormindo mesmo.

Eu Quase Falei Mal do Eike Batista

Sentei aqui para escrever um artigo falando mal do Eike Batista. Motivos não faltam: o cara montou um conglomerado onde uma empresa era cliente da outra, fazia planos megalomaníacos e colocava a letra X nos nomes dos negócios. Mas aí lembrei que moro no Brasil.

Moro em um país em que o sonho de 9 entre 10 dos nossos jovens mais talentosos é ser funcionário público, de preferência Auditor Fiscal da Receita Federal. "Esse é o Brasil", dizia o motorista do táxi que peguei semana passada, e que tinha acabado de passar em concurso para policial no interior do estado XYZ. "Todos os meus colegas já estão brigando pelos cargos", anunciava ele, "é Roubos e Furtos, é Anti-Sequestro. Eu quero ser motorista do IML, trabalhar só oito horas a cada quatro dias".

Vivo em um país onde um funcionário público que chefia 100 outros funcionários é um servidor da nação, mas um empresário que emprega 100 pessoas é um explorador do trabalho alheio. Vivo em um país em que ser capitalista - gerar empregos e pagar os impostos que alimentam o Estado - é pecado grave. É o que ensinamos há décadas em nossas escolas e universidades.

Um país em que membros de um dos poderes da República que prefiro não nomear (dica: não é o Executivo nem o Legislativo) receberam, para fazer um curso de uma semana em Miami, o valor de R$ 7.275,00 (sete mil duzentos e setenta e cinco reais ) de diária (você leu certo, mais de sete mil reais por dia). Esse é um país onde sindicatos de empregados e empresas são financiados com tributos, onde associações estudantis recebem verbas do governo, onde artistas famosos fazem shows milionários pagos pelo Estado. 

É claro que a história do Eike também tem financiamento do BNDES, dinheiro de fundos de pensão estatais e envolvimento de poderosos. Mas, lembrem-se, esse é um país onde se fazem leis para determinar o tamanho padrão das mesas de sinuca dos botecos (pensam que estou brincando ? dá um Google aí - foi em São Paulo) e obrigar os pescadores de beira de praia a usar "colete flutuante com apito acoplado e tênis com sola de borracha” (no Rio de Janeiro). Enquanto isso uma obra orçada em R$ 80 milhões acaba custando quase R$ 500 milhões (Cidade da Música, no Rio), emissários submarinos jogam ao mar bilhões de litros de esgoto in natura e 50 mil pessoas são assassinadas por ano (para comparação: na Índia são 3 mil, na China 9 mil, nos Estados Unidos 12 mil).

E eu quase falei mal do Eike - um sujeito que, bem ou mal, teve a energia e a coragem para criar empresas, empregar pessoas, sonhar sonhos de produção, de criação, de enriquecimento. Pode não ter dado certo, e ele pode ter feito coisas erradas, mas assim é o capitalismo: ele deve pagar por seus erros e dívidas e sair do caminho, outros vão continuar de onde ele parou, dar um reboot nos seus sonhos. Serão minas, portos, usinas e hotéis que continuarão existindo, gerando empregos e pagando impostos.

O capitalismo não é feito só de sucesso. Ele é feito de tentativa e erro, de muitas apostas que são perdidas e algumas poucas que dão muito certo.  Deixar de entender isso, e de incentivar os poucos corajosos que ainda se dispõem a empreender, é a loucura do Brasil - uma loucura que impede o progresso e eterniza no poder uma pequena casta de privilegiados, sob o manto de um Estado que pode tudo.

Eu quase falei mal do Eike Batista.

Atualização: Esse artigo foi publicado originalmente em janeiro de 2014. Estamos em fevereiro de 2015, e tudo e nada mudou. O escândalo da Petrobras mostrou até onde vai o compromisso do nosso Estado com o interesse público (as perdas calculadas até agora já atingem R$ 88 bilhões). Dados das contas públicas mostram que em 2014 o governo concedeu benefícios e incentivos fiscais a grandes empresas do valor total de R$ 323 bilhões (para comparação, o orçamento do Ministério da Saúde foi de R$ 100 bilhões e o da Educação de R$ 92 bilhões). Ike Batista está sendo investigado por manipulação de informações, teve bens apreendidos e se tornou o vilão da vez. 

Parece que se confirma a tese de que, como disse um leitor, "Eike não passa de um estelionatário muito bem assessorado e informado". Isso não me surpreenderia. Eu sempre olhava incrédulo enquanto todo mundo comprava ações das empresas dele - inclusive muita gente grande do mercado financeiro. Todas as vêzes em que fui a reuniões em uma empresa X fiquei espantado com o luxo das instalações, com a quantidade de gente recrutada de outras empresas grandes, e com a burocracia e demora em se tomar decisões. Montar um conglomerado onde uma empresa era cliente da outra sempre me pareceu loucura ou desonestidade. Foi por isso que, como disse, me sentei para escrever um posto falando mal dele. Mas o Eike aqui é só motivo para falar do Brasil.