A Tarde Em Que O Brasil Acabou

Em que momento um país acaba para alguém? Era uma tarde de domingo ensolarada no inverno do Rio de Janeiro em que as sombras escondiam um pouco de frio e a inclinação do sol fazia tudo mais bonito.

Era uma festa de aniversário de uma menina de 5 anos, em um bairro carioca com fama de bucólico e nome de uma árvore frutífera. Os amigos se encontram, bebem suas cervejas, atualizam a conversa. Chega a hora dos parabéns e de ir embora.

Os primeiros a ir são um casal com duas crianças. Tiram o carro da vaga e seguem pela rua até o final onde há uma bifurcação. A mulher, que dirigia, vira à direita. O homem, que mexia no celular, diz: "Não é por aqui não".

Se lhe perguntassem por que dissera isso ele não saberia explicar. Nunca estivera ali antes. Mas ele olhou a rua que subia e disse: "Faz a volta amor. É pelo outro lado".

Era. Seguindo pela esquerda a rua descia até se juntar à via principal do bairro. Foram para casa sem saber o que havia do lado direito, o lado por onde não seguiram.

Só souberam no dia seguinte.

De manhã cedo um telefonema acordou a mulher. Ela contou a história ao marido quando ele saiu do banho.

"Poderia ter acontecido conosco", ela disse. "Aconteceria conosco se tivéssemos seguido para o outro lado".

O marido sentou na cama com os olhos perdidos na parede. Eles estavam com as duas crianças no carro. Toda a vida deles, ali.

Essa foi a história que sua mulher lhe contou: o telefonema que ela acabara de receber era de uma amiga, que saíra da mesma festa pouco tempo depois deles, com o filho de 7 anos.

Ela tira o carro da vaga e sobe a rua, exatamente como eles haviam feito minutos antes. Ao chegar à bifurcação ela vira à direita, como eles haviam feito. E segue em frente.

Em que momento um país acaba para alguém?

Talvez no exato momento em que uma mãe e seu filho pequeno escolhem o lado errado da rua.

Cinquenta metros depois um homem, no meio da rua, faz o carro parar. Ele tem algo nas mãos. É um fuzil.

A partir daí tudo toma um ar de irrealidade, que depois vai confundir a mãe e todos os que escutam a história. Um homem de fuzil. Uma ordem: "abaixa o vidro". O cano da arma na cabeça da criança. Perguntas, explicações, autorização para prosseguir. Mais à frente outro homem, outra arma. Mais explicações. Nova permissão de partida, a rua começa a descer, a memória começa a se dissolver. Como se dirige até em casa depois disso? Como é possível comer, dormir, continuar a viver depois disso, como se nada tivesse acontecido ?

Homens de fuzil não combinam com festa de aniversário de criança, com  tarde ensolarada em bairro bucólico com nome de árvores.

Deve ter havido algum engano. Além, é claro, do engano que não se permite aos cariocas: o de entrar na rua errada.

Em que ponto esse engano faz com que tudo o mais - emprego, governo, o sol de inverno - perca o sentido?

Não há um final feliz nessa história. Os homens de fuzil continuam onde estão. A máquina que os mantém naquele lugar continua a girar. Pessoas continuarão a seguir para o lado errado, darão as explicações mais importantes de suas vidas, e, se tudo der certo, voltarão às suas vidas trazendo apenas a memória do choque e uma pergunta:

Em que momento um país acaba para alguém?

A primeira família dessa história, a que quase seguiu pelo lado errado, era a minha.