Encontrando o Frango Bovino: o Mito do Cidadão Comum na Política



Faço parte de um movimento de renovação da política desde 2007. Ajudei afundar o partido NOVO, e hoje pertenço a um movimento com um projeto ainda mais radical de renovação, o LIVRES, que está reconstruindo por dentro um partido com presença nacional.

Nessa caminhada aprendi muito e mudei minha visão sobre certos aspectos da política. Entendi melhor a realidade. Isso não reduziu minha repulsa e intolerância a práticas criminosas e antiéticas. Pelo contrário: consolidei a certeza de que o cumprimento da lei e a eliminação da impunidade são duas das bases sobre as quais construiremos um novo pacto republicano. Mas me dei conta de que a percepção idealizada que eu, como um cidadão comum, tinha sobre o que deveria ser a prática política estava muito distante da realidade de uma atividade que, ao mesmo tempo em que lida com o poder em suas formas mais absolutas, depende de mecanismos frágeis, imprevisíveis e incoerentes para existir.

Nada do que estamos descobrindo desde 2014, quando começou a Lava-Jato, aconteceu por acaso. Tudo isso foi, na minha opinião, resultado da combinação perfeita de três fatores. Primeiro, um sistema político-eleitoral criado em cima de idealizações ingênuas e inviáveis. Segundo, o abandono de qualquer padrão ético e moral pelos que participam da vida pública. Terceiro, uma concentração inacreditável de poder e riqueza nas mãos do Estado. Foi a tempestade perfeita. Mas por que isso aconteceu?

Nossos cientistas políticos usam linguagem empolada e teorias complicadas para descrever um quadro que, na verdade, é muito simples – e assustador. Vamos examina-lo rapidamente e com franqueza.

Em uma democracia republicana um político depende apenas do voto para chegar ao poder. Não é necessário preparo, honestidade, experiência, qualificação ou qualquer outra característica que seria básica para o exercício de qualquer atividade profissional remunerada no mundo moderno. Desde que preencha alguns requisitos bastante simples como idade mínima, cidadania e regularidade eleitoral e penal, qualquer um pode ser eleito vereador, deputado, senador, governador ou presidente.

Vamos pensar nisso: o estagiário da empresa em que você trabalha pode ser mais qualificado do que o vereador em quem você votou, e que vai ajudar a administrar a vida da sua cidade.

Em teoria, no sistema democrático qualquer cidadão pode votar e receber votos – e ser eleito. Se eleito ele pode ocupar um cargo executivo de topo. Não elegemos chefes de setor, secretários e nem ministros: elegemos prefeitos, governadores e presidentes ! Elegemos o chefe de TODA a máquina administrativa de uma cidade, estado ou país.

Recapitulando: pessoas que buscam a atividade política muitas vezes por motivos escusos, e que não têm o preparo necessário, são escolhidas pelo critério de popularidade (maior número de votos) para chefiar máquinas administrativas estatais com orçamentos gigantescos e poder quase infinito.

Na teoria, o acesso à carreira política está aberto a qualquer pessoa. A realidade, entretanto, é que no sistema político vigente em uma democracia republicana com voto universal, como é o caso do Brasil, é praticamente impossível para um cidadão comum - aquele que tem um emprego de carteira assinada, trabalha de nove às seis, tem uma família para sustentar e contas para pagar no fim do mês - disputar com sucesso uma eleição.

A primeira barreira é o acesso à disputa propriamente dita. Não existem candidaturas independentes. O primeiro desafio é convencer os controladores de um partido político a aceitar a sua candidatura. A segunda barreira é conseguir as condições mínimas necessárias para realizar uma campanha política. Recursos financeiros serão sempre um problema quando os colégios eleitorais são grandes, como é o caso do Brasil, um país de dimensões continentais onde alguns estados têm centenas de municípios e são maiores do que vários países da Europa.

As eleições para o legislativo seguem o estranho sistema proporcional, ainda pouco compreendido pela maioria da população. De uma forma simples, a eleição de um candidato depende não apenas dos votos recebidos por este candidato, mas também dos votos dados ao partido - a legenda - e dos votos recebidos pelos outros candidatos do mesmo partido. Por isso, às vezes é melhor para o candidato ser menos votado em um partido onde os candidatos obtiveram um número total de votos significativo do que ser um candidato bem votado em um partido onde o total de votos de todos os candidatos é pequeno. O problema é que você não sabe quem serão os outros candidatos do seu partido até que se realize a convenção partidária. E nesse momento, de acordo com calendário eleitoral, não é mais possível mudar para outro partido, caso você conclua que, com os candidatos que o seu partido escolheu, suas chances de eleição são poucas.

O problema mais grave para o cidadão comum é o singelo fato de que ele precisa trabalhar para viver. Não existe, para o trabalhador de carteira assinada, a possibilidade de deixar o seu trabalho para se dedicar por alguns meses a uma campanha eleitoral, e depois voltar como se nada tivesse acontecendo. Essa possibilidade só existe para os servidores públicos e funcionários de estatais, que contam com mecanismos que lhes permitem manter o seu emprego nessa situação. Quase nenhum funcionário de empresas privadas contará com a compreensão do seu patrão. Para o cidadão comum a opção que resta é se desligar do seu emprego e tentar encontrar outro após a campanha eleitoral, caso não seja eleito. Boa sorte para ele em um país com 12 milhões de desempregados. Mesmo se for eleito - situação em que terá garantida uma remuneração pelos quatro anos seguintes - o cidadão enfrentará o mesmo problema ao final do mandato, se não for reeleito.

Você aí, que depende do salário no final do mês para sustentar a sua família, está disposto a correr esse risco ?

Diante desse quadro deveríamos mesmo nos surpreender com a avidez com que os políticos se agarram aos seus mandatos ?

É razoável esperar, com esse sistema, que tenhamos uma “renovação da política” através da participação de “cidadãos comuns”?

O problema que descrevi é solenemente ignorado pela maioria dos partidos. Pior ainda: alguns partidos incluem nas suas entrevistas de “seleção de candidatos” a seguinte pergunta: “Sr. Candidato, como você planeja se sustentar durante a campanha?” Parece que escapa à compreensão dos responsáveis por esses partidos que, conduzida desta forma, a suposta renovação da política vai se limitar à participação de pessoas financeiramente independentes, de profissionais liberais bem sucedidos e de funcionários públicos.

A grande maioria dos cidadãos brasileiros, os trabalhadores que dependem de um salário no final do mês para sobreviver, continuarão como simples espectadores de um jogo político incompreensível e distanciado dos seus interesses e preocupações.

A verdadeira transformação da política – um desafio que existe no mundo todo, mas é urgente no Brasil – é mudar esse sistema para que o poder esteja acessível a todos, e não apenas a um clube de privilegiados. Política é vocação e serviço ao bem comum, e não um jogo cínico de regras complicadas, financiado pelos impostos pagos por uma imensa massa que só tenta sobreviver.

Enquanto esse quadro não mudar, encontrar o cidadão comum na política será tão fácil quando encontrar, no supermercado, um belo pedaço de frango bovino.