Nós Aqui Consideramos


Vou à agencia estatal resolver um assunto. Checam a documentação. “Falta xerox da identidade, da carteira de trabalho e do CPF”. Atravesso a rua até a lotérica, tiro as cópias, volto. Nova conferência de documentos. Pego a senha e tomo meu lugar em uma fileira de assentos.

Na minha frente há uma fileira de mesas. Em cada mesa, um burocrata está ocupado em uma atividade misteriosa. Não olham para nós, os “clientes”. Deve ser resultado de anos de prática, essa habilidade em não deixar que os olhos caiam sobre os suplicantes, meros pagadores de impostos, cada um com seu problema. Nenhum burocrata tem pressa. Daria para construir pirâmides no tempo em que esperamos. Ao meu lado há pessoas humildes, senhoras idosas, um homem de bermuda. Somos o povo; somos nós que construímos as pirâmides. Depois que os burocratas autorizam.

Depois de séculos me chamam. Nova conferência de documentos. “Esse número ‘9’ aqui está rasurado”, diz a burocrata, apontando, em um documento, uma data qualquer, irrelevante para o assunto em questão. Diante da minha expressão vazia ela reafirma: “Está vendo a perninha do ‘9’ ? Nós aqui consideramos isso uma rasura”. Claro. A sociedade te deu esse poder: o de “considerar” uma determinada realidade do jeito que você quiser, e pronto.

O que fazer diante de uma posição tão firme ? Engolir o desespero silencioso e voltar lá na empresa - que pode ser longe, do outro lado do mundo, na China, não importa, não faz diferença - e pedir que façam uma “anotação”, corrijam e perna do “9” e assinem de novo.

E depois rezar para, na volta, não ser atendido por um outro burocrata que encontre um outro problema, e nos mande dar voltas ao mundo em uma gincana de carimbos, cópias e anotações.

A senhora que me atendeu não conhece as minhas ideias, não sabe quem eu sou e nem o que penso sobre o Brasil. Na país da minha imaginação ela perderia seu emprego. O dinheiro que paga seu salário e benefícios ficaria no bolso dos pagadores de impostos.

O problema que me aflige seria inexistente - tudo se resolveria como resolvemos quase tudo hoje em dia: online

É para que esse país um dia exista que eu, hoje, levanto a minha voz.