No Bairro da Gávea, Rio de Janeiro

No bairro da Gávea uma rotina já é conhecida dos moradores. Milhares de pessoas se dirigem para o Jockey Club para mais um grande evento. No início da noite, falanges de flanelinhas, – que pelo tamanho deveriam ser tratados por flanelões - organizados por regiões e sub-regiões, colocam-se a postos para extorquir impunemente os cidadãos, explorando meio-fios, calçadas e, audaciosamente, os entremeios dos jardins da Praça Santos Dumont. Logo a seguir, ambulantes loteiam o espaço público na montagem de suas barraquinhas e distribuição de caixas de isopor, oferecendo aos transeuntes toda a sorte de bebidas e pequenos comestíveis. Vai chegando a hora do show e aos poucos, o trânsito ao redor da praça começa a se complicar, os flanelinhas começam a sumir com suas férias já garantidas enquanto alguns jovens se drogam no trecho inicial da rua Major Rubens Vaz.

Inicia-se a festa. A partir desse momento nenhum morador da região tem sossego. O som invade a madrugada, varandas, salas, quartos e dependências de empregadas. As esquadrias de alumínio vibram com os timbres mais graves. Acreditem, fica impossível dormir.

Mas o pior está por vir. Vencidos pelo cansaço, a vizinhança consegue cochilar, porém, às quatro da manhã, ao término da festança, o caos assume seu ponto alto. O trânsito evolui para a categoria “infernal”. Buzinas, freadas, arrancadas, carros trafegando em contra-mão, retornos proibidos, pequenas batidas e acidentes montam o quadro. Funcionários da prefeitura, soprando apitos de fazer inveja aos mestres de bateria das melhores escolas de samba do Rio, entram em cena na tentativa de organizar o fluxo. Bombeiros, policiais e ambulâncias, para vencer o engarrafamento, não poupam os decibéis de suas sirenes. A turma da limpeza urbana, em ação de pronto atendimento, recolhe ruidosamente a massa de lixo que se deposita na região. O público ainda excitado pelo show deixa o local cantando, obrigando os ambulantes a gritar ainda mais alto para vencer toda a massa sonora, na tentativa de vender uma latinha a mais. Algumas garrafas são quebradas, muitas latas arremessadas e os rapazes, em uma espécie de ritual canino, urinam nos muros, postes e árvores que se apresentam em seus caminhos. Por volta das cinco, quando acredita-se que tudo terminou, uma sinfonia de carrinhos-de-rolimã dos ambulantes em retirada, anuncia que o amanhecer está próximo.

Nesse momento, impossibilitado de enxergar um acordo racional, insone penso: onde estará dormindo John Locke? Li que ele costumava dizer que os cidadãos possuem direitos pessoais e invioláveis diante dos quais qualquer poder tem a obrigação de parar, mesmo o poder legítimo. Onde estão o direito ao silêncio e o direito ao descanso?

Logo em seguida considero: milhares estão felizes, cidadãos, flanelinhas, ambulantes, empresários, fornecedores, patrocinadores, artistas e músicos, enquanto uma incompleta centena de vizinhos se inquieta. Seria essa, na prática, a lógica utilitarista? O saldo racional positivo entre a quantidade de felicidade para o maior número de pessoas, a longo prazo. E que prazo será esse? Até as cinco da manhã ou pelos próximos meses até o pico do verão?

Recentemente recebi um e-mail de um órgão da prefeitura em resposta a uma reclamação: “Embora tenhamos encaminhado suas solicitações para os órgãos competentes, porém sem tempo de atuarem, nos deixa tranqüilo o fato do evento já ter terminado. Compreendemos e somos solidários aos momentos difíceis que você passou.” Solidarizado, estou aqui novamente.

Não defendo o fim das festas da nossa Cidade Maravilhosa e sim a eliminação dos seus impactos negativos. Acreditando no respeito mútuo e na igualdade de condições entre cidadãos, quero crer poder haver um debate “rawlsiano” - democrático e justo - entre empresários, autoridades e associação de bairros, no sentido de um diálogo cooperativo com fins de respeito, ganhos mútuos e imparcialidade.


(enviado pelo amigo Rômulo G., morador da Gávea)