Enterrem meu coração no Arpoador, em um dia de chuva


Quando chove no Arpoador parece que choverá para sempre. O sudoeste entorta árvores, derruba placas e quiosques; é um vento que sopra do mar, escuro e frio como o coração de um suicida. 

Os trovões que reverberam pelas ruas anunciam as ondas enormes que colidem umas com as outras e desabam sobre a areia da praia, como antigos monstros feridos de morte. Não há testemunhas além de uma criança assustada que observa o dilúvio por trás de uma cortina e um porteiro, recém-saído do serviço, que corre e se protege da chuva com um jornal na cabeça. Quando chove, o Arpoador parece uma terra estrangeira, onde vai chover para sempre. 

Eu sento junto à janela e observo a chuva entre as folhas da amendoeira. Lá no fundo gira o farol da Ilha Rasa sobre a mancha do mar. Já não passam carros. A água escorre por entre os pneus dos que estão estacionados. A rua, com inveja do mar tão próximo, procura uma compensação no alagamento. O planeta dorme.

Levanto do meu posto junto à janela, calço umas havaianas e saio pra rua, batendo a porta de serviço atrás de mim. No hall do elevador um vento circular sobe pela escada de incêndio cheirando a maresia e folhagem. Encontro o porteiro olhando uma televisão preto-e-branco. Ele abre a porta de vidro e estou na calçada. O nível da água já está chega nas pedras portuguesas. Atravesso a rua vazia e paro do outro lado, olho para cima, para a minha janela, onde estava até há pouco. Os pingos grossos de chuva entram e saem no foco de luz. 

O sentimento de ter um lugar para morar, o mais básico de tudo, proteção contra esta e outras tempestades que virão. Sentimento tolo, baseado em pedaços de papel e entendimentos que amanhã poderão não existir, que um dia, com certeza, não vão mais existir. Outras pessoas morarão ali, outros arranjos de móveis e sonhos, outras chuvas. Mas agora tudo isso ainda é meu. Enfio minhas havaianas nessa água salobra e desço a rua reconhecendo seus momentos; nesse apartamento aqui fui a uma festa de uma moça interessante mas casada; aquele ao lado quase comprei, péssimo negócio. Ao longo da rua muitos amores e rascunhos de amores, sorvetes de frutas exóticas e convencionais, meninos e meninas congelados no tempo e na vaidade que dormem, ignorando a chuva.

Atravesso de novo a rua e entro na lojinha do posto, que fica aberta 24 horas. 

"Eu vivo a maior parte do tempo sozinho. De vez em quando desço para ver tv com o porteiro, conversar”, diz um senhor ao amigo.

O tempo passará para todos. Alguém já disse que a coisa mais inesperada que acontece ao homem é a velhice. Ao homem resta então enfrentar a noite e as escolhas difíceis do mostruário iluminado e moderno de uma loja de conveniência que brilha na noite escura.

Lá fora voltou a chover forte.