Teoria da Dependência: Uma Visão Crítica

O ATRASO DO BRASIL E DA AMÉRICA LATINA



Em 1800 a renda per capita dos Estados Unidos era equivalente à renda do Brasil, e quase o dobro da renda do México. Em 1913 a renda dos Estados Unidos já era equivalente a quatro vezes a renda mexicana e sete vezes a renda brasileira. Esse fato demonstra que a grande diferença econômica entre Brasil e os EUA não é um produto do século XX; ela é resultado dos séculos XVIII e XIX (HABER, 1997, p.1). O estudo da história econômica da América Latina consiste, principalmente, de tentativas de explicar as razões desse atraso.

O ESTUDO DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

O interesse dos economistas pelas causas do crescimento econômico foi um subproduto da Segunda Guerra Mundial, a primeira guerra vencida pelo PIB.

Os Estados Unidos simplesmente produziram mais do que os países do Eixo, permitindo a mobilização de mais soldados e armas no campo de batalha do que era possível aos inimigos. (HABER, 1997, p.22).

Dois fatores limitavam o crescimento econômico dos países do terceiro mundo. O primeiro era a inexistência de um contexto político e social estável, mas flexível, capaz de absorver rápidas mudanças estruturais e resolver os conflitos resultantes, ao mesmo tempo em que incentiva os grupos sociais promotores do crescimento. 


Getúlio e Prestes dividem palanque eleitoral em 1954


O segundo fator inibidor eram as políticas das nações desenvolvidas para os países em desenvolvimento. Essas políticas, ainda que introduzissem alguns elementos econômicos e sociais modernos, apresentavam aspectos claramente inibidores, como a imposição de uma situação colonial ou outras limitações das liberdades políticas. O resultado foi que os países em desenvolvimento passaram a dar prioridade aos movimentos de independência política, relegando o crescimento a um segundo plano (KUZNETS, 1973, p. 254).


Independência sem desenvolvimento: Brasil teve crescimento zero entre 1800 e 1900


O SURGIMENTO DA ESCOLA DA DEPENDÊNCIA

A maioria dos estudiosos da história econômica da América Latina seguiu um caminho diferente no estudo do desenvolvimento, embarcando em um projeto de estudos e pesquisas baseado em teorias Neo-Marxistas, que não só abandonava as premissas teóricas da escola econômica de crescimento como também evitava o uso sistemático de dados quantitativos para testar hipóteses explícitas (HARBER, 1997, p.3). 

Esse movimento começou na década de 40 e ganhou força nos anos 60, e envolvia a rejeição de dois conceitos fundamentais para a economia de desenvolvimento. O primeiro era que as leis econômicas que governavam as economias desenvolvidas tinham validade também nas economias dos países em desenvolvimento. O segundo era que as relações econômicas entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos sempre geravam benefício mútuo (HIRSCHMAN, 1981). 





Segundo a tese formulada de forma independente por Raúl Prebisch e Hans Singer em 1949, existiria uma tendência de degradação dos termos de troca para os países que exportam commodities e importam produtos manufaturados (HIRSCHMAN, 1981, p.15). Essa tendência seria uma consequência do poder dos sindicatos nos países desenvolvidos e do desemprego nos países periféricos. A tese afirmava que, sem um estado fortemente intervencionista nos países periféricos, seria inevitável o favorecimento dos países desenvolvidos

Uma vez que se observou que a interação entre países ricos e pobres poderia, em algumas circunstâncias, ter a natureza de um jogo de soma zero uma coisa estranha aconteceu (...) rapidamente se tornou atraente dos pontos de vista político e intelectual afirmar que essa era a essência do relacionamento, e que ela tinha a força de uma lei férrea, e se aplicava a todas as fases do contato entre o centro e a periferia. (HIRSCHMAN, 1981, p.18).



Essa visão do desenvolvimento econômico logo resultou no surgimento de várias obras de história econômica latino americana escritas sob o ponto de vista estruturalista, como essa escola passou a ser chamada. Entre elas destacam-se os estudos de Celso Furtado sobre o Brasil e de Aldo Ferrer sobre a Argentina. As origens dessa escola na crítica da economia neoclássica significaram a rejeição aos métodos analíticos e quantitativos usado pelos estudiosos do desenvolvimento econômico (HARBER, 1997, p.8). As ideias estruturalistas sobre as economias latino-americanas não eram vistas como hipóteses a serem testadas, mas como verdades necessárias. 

Os estudiosos das economias da América Latina passaram a acreditar, como artigo de fé, que o subdesenvolvimento da região era resultado do próprio capitalismo. A maior parte dos estudiosos dessa escola, que passou a ser conhecida como a Teoria da Dependência, abandonou as análises sistemáticas, baseadas em teoria, como modelo de pesquisa sobre o passado econômico da América Latina (HARBER, 1997, p.9).



DEPENDÊNCIA E MARXISMO

As ideias da Teoria da Dependência são parte da tradição Marxista do pensamento latino americano. 

Mais do que qualquer outra coisa, a perspectiva da dependência reafirma ideias Marxistas sobre o desenvolvimento latino americano que tem uma longa história na região, que permanecem influentes em vários setores, e que provavelmente permanecerão influentes, não importa o que aconteça com a "escola" da dependência (Packenham, 1998, p.7).

A Teoria da Dependência combina as ideias Marxistas de análise de classe com uma crítica estruturalista da teoria internacional do comércio, embora dependência não fosse nem estruturalismo nem Marxismo (HARBER, 1997, p.9). Seu argumento central era a deterioração dos termos de troca ao longo do tempo: o declínio do preço dos produtos primários exportados pela região em relação ao preço das importações vindas dos países industrializados do Atlântico Norte.


Uma segunda fonte de ideias e inspiração para os formuladores da Teoria da Dependência foram os escritos de Lênin sobre o imperialismo (PACKENHAM, 1998, p.8). Segundo Cardoso (1972) "Lênin formulou com simplicidade o que viria a ser o núcleo das análises de dependência: as formas de articulação entre as duas partes de um modo de produção, e a subordinação de um modo de produção a outro" (CARDOSO, 1972, p.4). Lênin antecipou a ideia de uma "anti-nação dento da nação" defendida por Cardoso e todos os outros escritores da dependência. 
Esse conceito é crucial à perspectiva da dependência; ele afirma que a solução específica para os problemas interligados de exploração de classe e imperialismo nacional é a derrubada do capitalismo e a instalação do socialismo (PACKENHAM, 1998, p.8).
O arcabouço teórico da dependência passou a ser considerado o modelo mais adequado ao estudo da política, sociedade e economia da América Latina. A Teoria da Dependência se tornou - e continua a ser - o tema dominante dos livros-texto mais usados sobre história latino-americana (EAKIN, 1988). 


A teoria da dependência ainda é o tema dominante nas universidades brasileiras

OS PROBLEMAS COM A TEORIA DA DEPENDÊNCIA

A formulação teórica da dependência deixou sem resposta importantes questões, por exemplo, ao insistir que a única saída para os países periféricos é o socialismo (PACKENHAM, 1998, p.78). 


(...) Cardoso insiste que a única alternativa desejável ou aceitável é o socialismo. Ele nada diz sobre a natureza do socialismo, de forma abstrata ou concreta. Abstratamente ele diz apenas que ele é mais "justo" e "igualitário" que o capitalismo (...) (PACKENHAM, 1998, p.78).


Haber (1997) identifica três problemas graves com o modelo de dependência. O primeiro foi o uso de argumentos econômicos improvisados. Um exemplo é a visão dependendista de que o investimento externo direto (foreign direct investment, FDI) causa subdesenvolvimento, pois “descapitaliza” a América Latina, já que o valor dos lucros repatriados excede o valor do investimento original. Esse ponto de vista ignora a demanda criada pelo investimento estrangeiro por insumos domésticos, e o papel dessa demanda na criação de novas indústrias” (...) (HARBER, 1997, p.11).
O segundo problema com a teoria da dependência – e o aspecto que teve o impacto mais negativo e duradouro no campo da história econômica latino americana - foi a rejeição do conceito de que ideias devem ser submetidas à avaliação científica. (HARBER, 1997, p.11). Ao invés de elaborar hipóteses cuidadosamente construídas, e testá-las usando dados coletados sistematicamente, os dependendistas frequentemente faziam afirmações gerais que não eram confirmadas pelas evidências. 

Packenham (1998) observa sobre Fernando Henrique Cardoso (1969):
Existem dezenas dessas generalizações transnacionais em Dependência e Desenvolvimento. A maioria delas são, como os exemplos dados, afirmativas simples e descontextualizadas. A maior parte delas, quando aparece no livro, não tem mais solidez ou especificidade do que quando citadas aqui. Elas não são, quase nunca, documentadas ou mesmo exemplificadas. (PACKENHAM, 1998, p.60).
A escola de pesquisa que se desenvolveu a partir daí não deu importância à coleta cuidadosa de dados ou à formulação clara de hipóteses testáveis. Os dependentistas, por razões políticas e ideológicas, frequentemente tinham como objetivo provar que a teoria era correta.  “Desta forma, a tradição da dependência inaugurou o uso de regras de evidência e argumentação sem o necessário rigor, que permitiram a formulação de hipóteses de forma implícita e incompleta, o uso de argumentação tautológica e a apresentação seletiva de dados”. (HARBER, 1997, p.11). 




O terceiro e mais grave problema da teoria da dependência é que as suas afirmativas centrais eram, em sua maioria, inconsistentes com os fatos (HARBER, 1997, p.12). Isso foi comprovado à medida que os estudiosos transformavam as ideias da dependência em hipóteses falsificáveis e as testavam usando os dados históricos das economias da região. Por exemplo, um exame dos dados de comercio exterior da região no século XIX concluiu que houve, na verdade, uma melhoria nos termos de troca, ao contrário do que dizia a afirmação central da teoria da dependência: a de que a deterioração dos termos de troca era a principal responsável pelo subdesenvolvimento da região (HARBER, 1997, p.12). O peso das evidências leva à conclusão de que nunca houve deterioração a longo prazo dos termos de troca na América Latina, mas apenas movimentos cíclicos, sem nenhuma tendência clara de longo prazo (LEFF, 1982). 


O outro dogma da teoria da dependência era a existência de uma burguesia compradora, que controlava um estado fraco que não queria e não podia agir em nome no interesse nacional (HARBER, 1997, p.12). Entretanto, estudiosos da história industrial da região encontraram burguesias nacionais com poder político considerável e espírito desenvolvimentista já no século XIX. Essas elites industriais nacionais convenceram seus governos a estabelecer altas barreiras tarifárias contra fabricantes estrangeiros e a implantar programas de subsídio para apoiar as indústrias nascentes da América Latina. Tudo ao contrário do que afirmava a teoria da dependência.

CONCLUSÃO

A hegemonia teórica do modelo de dependência deve ser entendida considerando-se o contexto político dos anos 1960 e 1970. A Teoria da Dependência era um mero reflexo de um questionamento político e filosófico maior do poder político e econômico dos EUA. (HARBER, 1997, p.10).



Ao constatar as inconsistências cada vez mais óbvias entre a teoria e a realidade, os dependentistas reagiram de duas formas. A primeira foi criar uma versão mais complicada da teoria, chamada de desenvolvimento dependente associado, que afirmava que o desenvolvimento poderia ocorrer em um contexto de dependência, admitindo implicitamente que a Teoria da Dependência não conseguia explicar o subdesenvolvimento latino americano (HARBER, 1997, p.13). 


A segunda reação foi uma tentativa de reforma da teoria, através de sua aplicação a situações históricas concretas. A grande distância entre os dogmas da Teoria da Dependência e a história real da América Latina impossibilitou os revisionistas de estudarem crescimento econômico; ao invés disso eles focaram seus estudos em questões sociológicas e políticas. 

Embora esse trabalho tenha aspectos importantes e válidos, ele tem pouco a dizer sobre as origens do subdesenvolvimento latino americano. (HARBER, 1997, p.14).



REFERÊNCIAS

CARDOSO, F.  Notas sobre el Estado Actual de los Estudios sobre la Dependencia. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, pp. 3-31, 1972.
CARDOSO, F.  The Consumption of Dependence Theory in the United States. Latin American Research Review, 12:3, pp. 7-24, 1977.
CARDOSO, F.; FALETTO, E.  Dependency and Development in Latin America. University of California Press, 1969.
EAKIN, M. Surveying the Past: Latin American History Textbooks and Readers. Latin American Research Review, Vol. 23, No. 3, pp. 248-257, 1988.
HABER, S. How Latin America Fell Behind: Essays on the Economic Histories of Brazil and Mexico, 1800-1914. Stanford University Press, 1997.
HIRSCHMAN, A. Essays in Trespassing Economics to Politics and Beyond. Cambridge, 1981.
KLÁREN, P. Lost promise: explaining Latin American underdevelopment. Westview Press, 1986.
KUZNETS, S. Modern Economic Growth: Findings and Reflections. The American Economic Review, Vol. 63, n.3, pp. 247-258, 1973.
LEFF, N. Reassessing the Obstacles to Economic Development. Underdevelopment and Development in Brazil, Vol. 2. London, 1982.
MADDISON, A. The World Economy: A Millennial Perspective. OECD Publishing, 2001.
PACKENHAM, R. The Dependency Movement: Scholarship and Politics in Development Studies. Harvard University Press, 1998.



Esse artigo é uma versão condensada de um trabalho apresentado à Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV-RJ em janeiro de 2015. O artigo original está disponível mediante solicitação.