Nó górdio, de Alfredo Sirkis, O Globo de 15/5/2006

A principal providência a ser tomada em materia de segurança pública, capaz de ter uma influência positiva sistêmica, é instituir a dedicação exclusiva e acabar com a escala de serviço das polícias.

Numa situação altamente complexa é importante definir o nó górdio a ser cortado, o elemento prioritário capaz de alavancar uma nova dinâmica. Há dezenas de coisas a serem feitas em relação a nossa crise de segurança que demanda, certamente, uma politerapia multidisciplinar. Há aspectos econômico-sociais, culturais, urbanísticos e até espirituais a serem considerados, há abundante literatura e palpitaria sobre tudo isso. Mas o “x” do problema que proponho enfrentar é a questão da (falta de) dedicação exclusiva nas polícias.

A escala de serviço de 24 horas de plantão por 48 ou 72 de folga, embora profundamente enraizada na cultura funcional vigente, é uma aberração. O trabalho do policial civil e militar é descontínuo fugindo a uma rotina que favoreceria um melhor enquadramento e disciplina, propiciando, na esmagadora maioria dos casos, uma dupla dedicação, com uma segunda atividade profissional que, com freqüência, torna-se predominante em termos de retorno econômico e investimento de energias.

Esse segundo emprego é, freqüentemente, pouco compatível com a prioridade à segurança pública –pode, objetivamente, nutrir-se de sua precariedade- e, no caso da “banda podre”, o tempo de folga é dedicado às articulações criminosas. Não é fortuito que quase 70% das mortes de policiais se dêem em dias de folga.

As vantagens de um regime de dedicação exclusiva saltam aos olhos: um aumento imediato de contingente, um controle muito maior da instituição sobre o cotidiano de seus quadros, uma maior concentração de energias, continuidade no trabalho investigatório, mais especialização. Recentemente estive em Bogotá onde a criminalidade violenta foi reduzida em 50% em uma década. A Policia Nacional dispõe de 16 mil homens, com dedicação exclusiva. Ocupam efetivamente o território: estão em toda parte patrulhando a pé, em grupos de três com fuzil metralhadora e um bom sistema de comunicação.

Bogotá, com sete milhões de habitantes, é um pouco maior que o Rio. Aqui dos 38 mil policias militares, quantos estão efetivamente na rua todos os dias ? Além das folgas é preciso contar a quantidade impressionante de policiais, dentre os mais adestrados, cedidos para outros órgãos e instituições --e que, freqüentemente, acabam sendo privilegiados nas promoções-- É provável que, na realidade, menos de um quarto do efetivo esteja disponível.

Nos manuais de contra-insurgência recomenda-se, para um controle territorial eficaz, uma relação entre forças de segurança e população de 20 para cada mil. Por esse critério teríamos que ter 120 mil membros de forças de segurança atuando de forma planejada e coordenada no Rio. Sinto dizer mas vivemos uma situação insurrecional “de fato” a partir do momento em que se quebrou o monopólio das Forças Armadas sobre o armamento de guerra e passou a existir o controle territorial de favelas por parte de bandos armados que agora ampliam seu poder ao comércio dos bairros vizinhos e tornam cada vez mais inseguras as vias expressas.


A circunstãncia de ser uma situação insurrecional não-ideológica, sem objetivos aparentes de poder --de fato já o tomaram, onde lhes interessa-- não altera a essência do fenômeno. De fato, torna mais difícil sua erradicação pois é economicamente cevado pela droga ilegal –provedora de lucro certo— e pela difusão de uma sub-cultura que exalta e realimenta seus efetivos efêmeros mais constantes.

A eventual instituição da dedicação exclusiva tem dois grandes problemas, o orçamentário: terão que ser pagos bons salários e o cultural-corporativista: a escala de serviço representa hoje hábito arraigado, modo de vida. As duas questões estão relacionadas: se a sociedade exige uma boa polícia deve entender que ela é cara. Quanto ao hábito, vejo muitos policias favoráveis à mudança e penso que poderia haver uma fase de transição com coexistência dos dois regimes mas, claramente, um favorecimento em termos salariais, de promoções, cursos, de financiamento de casa própria, aposentadoria, etc... aos que optassem pela dedicação exclusiva.

Há muitas outras providências: uma corregedoria realmente independente e eficaz, leis mais duras, o reforço do policiamento comunitário, melhorias técnicas de todo tipo, absorção pela Força Nacional dos militares adestrados que, todo ano, deixam os paraquedistas, fuzileiros e forças especiais com risco de serem captados pelo tráfico, progamas assistencias focados em adolescentes em situação de risco, etc...

Mas, o nó górdio a ser cortado é esse da profissão policial ser tratada, institucionalmente, como “bico”.

Fim de Tarde

(do diário de um pai de Ipanema)




Sexta feira consegui sair cedo de um cliente e corri para te pegar na escola. Não consegui chegar a tempo; a Lúcia foi te buscar e ficou em casa me esperando. Cheguei às cinco e meia, troquei de roupa e fomos à praia.

Tirei seu uniforme e coloquei a sua sunga vermelha no trocador do Ipabêbê. Você brincou no parquinho, bebemos água de coco sentados no banco de cimento e fomos caminhar pelo calçadão. Terminamos na beira do mar, onde as ondas quebravam com força. A tarde caía e os restos de luz se refletiam na areia molhada. A força das ondas criou uma grande rampa lisa por onde a água subia. Sentamos e brincamos na areia; primeiro fazendo buracos, depois você sentado e eu te puxando pelas pernas para escorregar até perto da água.

As pessoas começaram a fechar suas cadeiras e guarda-sóis e ir embora, a praia ia ficando vazia; a luz diminuía, rapazes e senhoras passavam correndo pela areia. Os garis do turno da noite chegaram caminhando devagar, recolhendo sem pressa o lixo dos banhistas.

Você corria pela areia, eu corria atrás. A noite caía lenta como em um filme, e a cidade aumentava seu ritmo; o barulho dos carros parados no trânsito, a sirene de uma ambulância, pessoas caminhado apressadas na calçada.

Agora já está quase escuro, nós dois ainda de sunga, a luz dos postes formando um círculo à nossa volta, e além dele a escuridão avançando sobre o mar e a areia. Você correndo atrás de um pombo, eu correndo atrás. Hora de te pegar no colo para dar mais um beijo, fazer um carinho e tomar o caminho de casa, pedindo a Deus que mantenha o mundo assim por mais um dia, por mais algumas horas.

3 de Abril de 2005

Eu Tenho Um Sonho

Há dois pontos de vista comuns atualmente, com os quais não concordo.

Um é de que o de que tudo é culpa “da sociedade”, “de todos nós”.

Isso é geralmente usado para simplificar, quase sempre de forma errada, problemas complexos, e oferecer soluções erroneamente simples. Por exemplo, a culpa de haverem crianças nas ruas é “de todos nós”.

Embora o grau de mobilização da sociedade para enfrentar uma determinada situação – menores vivendo nas ruas - seja um fator importante, em um grande número de casos a culpa é, por mais simples que possa parecer, de adultos que vivem da exploração destas crianças.

Qualquer um que preste atenção ao que se passa em nossas ruas logo verifica que isso é um fato.

O problema da violência urbana (que na verdade deveria ser chamado de problema da criminalidade urbana) é, da mesma forma, atribuído à sociedade. “Todos somos culpados”, é a frase favorita dos defensores desta corrente.

Permito-me discordar. O culpado pelo crime é o criminoso – aquele que, entre várias opções, escolhe a de usar violência armada para atingir seus objetivos, sejam eles quais forem. Outros cidadãos, submetidos às mesmas condições, escolhem outras alternativas, como o trabalho.

Dizer que “somos todos culpados” mascara a causa real do problema, e não ajuda na busca da solução. É um paternalismo arcaico que patrocina a complacência com o erro, e reforça a percepção dos responsáveis verdadeiros de que podem escapar de qualquer punição.

É esse ponto de vista que origina aberrações como nossa Lei de Execuções Penais, que permite que criminosos bárbaros tenham privilégios como “visita ao lar”, e saiam livres após poucos anos de prisão.

O Brasil Não é Para Amadores

Do blog Promotor de Justiça (http://promotordejustica.blogspot.com/)


No Brasil, o cidadão não tem o direito de ficar desligado – de contemplar o céu e rolar pela relva; não tem como ser amador numa ambiência repleta de amoitados riscos oficiais, extra-oficiais e marginais. Precisa andar nas ruas olhando para os lados, em sobressalto permanente, atento aos mais diferentes golpes que podem vir de qualquer esquina de qualquer beco ou avenida. Precisa se defender de um Estado que lhe cobra impostos escorchantes que acabam mal aplicados, perdidos nos desvãos da burocracia inepta ou nos dutos da corrupção.


(...)


As sociedades mais avançadas são aquelas em que as pessoas podem se dedicar às suas tarefas, às suas especialidades, sem precisar se defender de tudo e todos. Quando os golpes deixam de ser monopólio de bandidos, estelionatários e criminosos, podendo ser praticados por agentes do governo, fica o indivíduo praticamente impossibilitado de se defender. Vira um amador, acuado e indefeso, cercado de profissionais da ilicitude.


É a fragilidade das instituições que explica como e por que os brasileiros honestos se tornam amadores manipulados por meia dúzia de profissionais do crime e da política. E as instituições crescem fracas quando a sociedade não se aferra a determinados valores. Em que a média dos brasileiros acredita com firme convicção?


Infelizmente, a democracia – não o democratismo populista – entendida como forma de limitar, distribuir o exercício do poder, a economia de mercado e a clara separação entre governo e Estado não são prezados como merecem. É o laxismo geral, a falta de inabalável adesão a certos valores político-econômicos, que faz com o País esteja sempre desorientado. Os desequilíbrios estruturais e a bandalheira moral não são devidamente combatidos porque faltam ao povo e às elites o profundo comprometimento com determinados valores filosóficos.


A atávica falta de respeito à liberdade individual, a incapacidade institucional de responsabilizar as pessoas por seus atos, a negação do direito à autodefesa fazem com que os amadores fiquem à mercê de facas, cacos de vidro, pistolas automáticas, AR-15 enquanto os profissionais da manipulação os engabelam propondo o desarmamento como solução.


Os amadores pagam impostos e se trancam apavorados em casa e os profissionais defendem os bandidos como vítimas do Sistema. Os profissionais bolam planos assistencialistas e populistas, os amadores neles acreditam e ainda pagam a conta. E com isso a maioria deixa de receber saúde e educação de qualidade. Os profissionais contratam publicitários com dinheiro ilícito; os amadores se deixam seduzir. Os profissionais da criatividade, pagos a preço de ouro, criam para os outros profissionais, os poderosos, a propaganda “Um País de Todos” e os amadores não percebem que todos são Eles, são apenas Eles, os donos do Poder.



Por Alberto OlivaFilósofo, escritor e professor da UFRJ. Mestre em Comunicação e Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor-palestrante da EGN (Escola de Guerra Naval) e da ECEME (Escola de Comando e Estado-maior). Pesquisador 1-A do CNPq. É articulista do Jornal de Tarde desde 1993. Possui sigficativas publicações como "Liberdade e Conhecimento", "Ciência e Sociedade. Do Consenso à Revolução", "A Solidão da Cidadania", "Entre o Dogmatismo Arrogante e o Desespero Cético" e "Ciência e Ideologia". www.parlata.com.br

Eu Tenho Um Sonho - 2

O outro ponto de vista do qual discordo é de que “tudo é culpa do governo”.


O governo é um grupo de representantes legais e administradores públicos, alguns eleitos pelo voto da população, outros contratados como servidores da máquina administrativa.


O governo é um reflexo do povo. As práticas do governo são as práticas do povo. A honestidade do governo é a honestidade do povo. O povo brasileiro – que suborna o guarda, compra carteira de estudante, dirige embriagado – não pode ter um governo da Noruega.


Mas se não acredito que “tudo é culpa da sociedade”, nem que “tudo é culpa do governo”, em que eu acredito ?


Eu acredito nisso: que cada cidadão é uma micro representação do seu país. Que é com os gestos pequenos, diários, repetidos geração após geração que se constrói uma nação. Que é preciso, diariamente, mais do que protestar contra o que está errado, impedir que o erro aconteça.


Eu proponho um sonho: e se ao invés de reclamar da atuação da polícia, os cidadãos de cada bairro do Rio de Janeiro procurassem conhecer o batalhão da Polícia Militar, a Delegacia e o grupamento da Guarda Municipal que servem o seu bairro ? E se soubessem os nomes do comandante, dos oficiais, do delegado, dos inspetores ? E se esta convivência criasse intimidade, e se ficasse claro então quem são os bons e os maus policiais, e se os policiais e a comunidade discutissem juntos os problemas do bairro e como enfrentá-los ?


E se, desta forma, subitamente os policiais se descobrissem respeitados, queridos, encorajados ? E se, como resultado, melhorassem seus salários, seus equipamentos, suas condições de trabalho ?


Está na hora de passar da reclamação estéril à ação produtiva.


É nisso que acredito.


Eu tenho um sonho.

Um Dia de Julho

Naquela sexta feira de Julho eu cheguei mais cedo em casa e finalmente tive tempo para olhar as bicicletas que estavam esquecidas na garagem há um ano. Como era de se esperar, estavam cobertas de sujeira e ferrugem. Peguei a que parecia em melhor estado e atravessei a rua até a loja de bicicletas que fica na esquina com a Avenida Atlântica.

Nunca havia entrado ali, intimidado pela vitrine e suas bicicletas de nome italiano, com preços altíssimos, tudo moderno e impecável. Engano meu: não só eles consertavam bicicletas comuns, como os preços eram bastante razoáveis. Por sessenta reais teria minha bicicleta em condições de andar com segurança. Topei, e fiquei de buscá-la no dia seguinte.

Enquanto conversava com o mecânico, a moça do caixa se aproximou do guarda de segurança que cuida daquela esquina (cada esquina do Rio de Janeiro agora tem um segurança) e apontou na direção do meu prédio.

“Você aí parado, uma moça acabou de ser assaltada lá do outro lado”.

O segurança olhou para onde ela apontava e deu de ombros.

“Lá é do outro lado, eu cuido daqui”.

Na entrada do prédio o porteiro me confirmou: uma moça tivera sua bolsa roubada por um ladrão de bicicleta, que fugiu em disparada. Na frente da minha casa, às três horas da tarde de uma sexta feira.

Um Dia de Julho - 2

No dia seguinte retorno à loja de bicicletas. O mecânico faz os últimos ajustes, acerta a altura do assento, sugere algumas mudanças. Dou umas voltas na calçada em frente: já faz um ano que não ando de bicicleta, minhas pedaladas são inseguras e meu equilíbrio precário. Mas o sujeito fez milagre e aquela coisa suja e enferrujada renasceu. É sábado, seis horas da tarde, tenho uma bicicleta nova nas mãos, e tempo livre.

Atravesso a rua, pego a ciclovia de Copacabana e sigo rumo ao Leme.

Sábado e domingo são os piores dias para pedalar. Há excesso de gente e de bicicletas, pessoas caminhando devagar na ciclovia, ciclistas andando muito depressa em grupos de três ou quatro lado a lado, fechando o caminho. Senhoras idosas surgem repentinamente, passageiros desembarcam de ônibus direto na pista, adultos e crianças atravessam sem olhar. Muitos acidentes acontecem.

Já estou no Posto 5 quando começa a anoitecer, e me arrependo de ter vindo. Minha miopia, apenas um incômodo de dia, vira um problema sério à noite. Minha visão está embaçada; só vejo vultos indistintos; reduzo a velocidade ao mínimo possível. Subo na calçada devagar e dou meia volta. No sentido contrário minha visão piora; os faróis dos carros me ofuscam. Pelo menos a ciclovia se esvazia um pouco.

Um Dia de Julho - 3

Vou pedalando e observando as pessoas que caminham no calçadão cheio. Casais abraçados. Turistas de mochila. Vendedores de milho, pipoca, churrasquinho.

De repente um grito. “Minha bolsa”. Pelo canto do olho esquerdo vejo uma mancha indistinta que se move rápido demais no calçadão. A mancha vira um rapaz de bicicleta que volta para a ciclovia, em alta velocidade, alguns metros à minha frente.

Me surpreendo com meu grito alto.

“Pega ladrão !”

Mudo a marcha e começo a pedalar mais rápido. O rapaz se distancia. Pedalo mais e mais rápido, mas ele continua ganhando terreno.

“Pega ladrão, roubou a bolsa da mulher”

Grito tão alto que, com o esforço de pedalar, minha voz sai esganiçada e rouca. Na frente a ciclovia vazia, só ele e eu. O calçadão continua cheio. Continuamos assim, ele na frente, eu cada vez mais atrás, por um minuto ou dois que me parecem horas.

O sinal da Atlântica se fecha e ele atravessa as duas pistas voando. “Pega ladrão”, grito outra vez, mas ele já está entrando na Miguel Lemos, e desaparece entre pedestres e carros.

Estamos em um sábado de sol, 23 de Julho de 2005. Uma multidão lota o calçadão de Copacabana. Um ladrão acaba de roubar a bolsa de uma turista e apenas uma pessoa, entre as milhares que estão aqui, esboçou alguma reação.

Eu. Porque eu não aceito.

Eu Não Aceito - 3

Agora é meu amigo da torrada que vem caminhando pela calçada, no melhor trecho de Ipanema, quando uma senhora joga seu carro em cima dele.

“Quero entrar na garagem”, explica ela, apontando a entrada do estacionamento, atrás do meu amigo.

“Minha senhora, eu estou na calçada !” protesta meu amigo, “a senhora não pode fazer isso, jogar o carro em cima de alguém.”

“Mas eu preciso entrar na garagem”’insiste ela, acelerando e movendo o carro para a frente.

Meu amigo recupera o fôlego e se dá conta do absurdo da situação. Ele se lembra da torrada.

“Não vou sair” ele diz, olhando para a mulher. “Estou na calçada, e gostei deste lugar. Vou ficar aqui, em pé, até quando eu quiser”.

Ah, o trânsito – existe um espelho melhor da noção de ética e civilidade do brasileiro ? Porque no trânsito vale tudo, e tudo pode, e quase tudo se resolve com uma carteirada, com um “sabe com quem está falando”, com uma cervejota. O trânsito também mostra como é relativo nosso senso de civilidade. Quando somos pedestres, tudo é um absurdo: o excesso de velocidade, a falta de sinais, o desrespeito dos motoristas ao sinal vermelho, os carros parados sobre a calçada, os bêbados ao volante. Quando os pedestres assumem a direção dos seus carros tudo se inverte instantaneamente, o que era absurdo passa a ser normal, e esses pedestres idiotas que teimam em atravessar no meio da rua ?

No nosso país o certo e o errado dependem de muita coisa. Dependem de quem. Dependem de onde. Fundamentalmente, dependem de quanto.

De onde vem tamanha tolerância ao que é errado, injusto, sujo, poluente, criminoso, imoral ?

O que falta para que os homens de bem comecem a dizer: “Não. Eu não aceito” ?

Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores

Estou descendo a Francisco Otaviano, em uma terça feira de Setembro. Na calçada à minha frente, uma senhora está parada, olhando para cima, em direção aos prédios, cenho franzido.

Nesta cidade, tudo pode acontecer. Eu paro. Penso em oferecer ajuda. Olho para onde ela olha, para o alto. Não vejo nada, só os andares superiores do Colégio Isa Prates, falido, abandonado.

Seria alguém se jogando de uma janela ?

Então eu percebo que a mulher sorri. Ela fala:

"Orquídeas, que coisa. Orquídeas em Ipanema"

Eu olho de novo; em uma árvore na frente do número 86 da Francisco Otaviano, em frente ao Parque Garota de Ipanema, no alto do tronco, crescem três ramos de orquídeas, um rosa e dois brancos.



Numa tarde de sol de setembro, eu e a senhora, parados na calçada, olhando para cima.

Olhando as orquídeas.









Eu Não Aceito - 1

Um amigo me conta, consternado e espantado, sua estória: foi a São Paulo a trabalho, teve que pernoitar. No dia seguinte, no café da manhã do hotel, escolhe uma fatia de pão, coloca na torradeira e vai buscar um copo de suco. Escuta então, atrás de si, o barulho da torradeira cuspindo a torrada; quando se vira, vê um senhor, de terno e gravata, que retira a torrada e a coloca no seu prato.

“Desculpe, mas essa torrada é minha” protestou meu amigo.

“Sua ?”, perguntou o homem, “quando eu cheguei não tinha ninguém aqui”

Meu amigo pensou em protestar: eu estava aqui, só me virei um instante, mas a torrada é minha, como você acha que o pão entrou ali ? Depois desistiu e resolveu comer outra coisa.

Eu entendo a atitude do meu amigo. Não vale a pena brigar por um pedaço de pão torrado.

Ou vale ?

Quando retornei ao país, depois de cinco anos no exterior, me vi em várias situações semelhantes. Situações em que dá vontade de gritar, de brigar, de pedir a minha torrada de volta.

Eu venho caminhando na direção de Ipanema, empurando o carrinho de bebê com o meu filho dentro. No meio da Francisco Otaviano a calçada está totalmente bloqueada; o manobrista de um flat estacionou vários carros bem no caminho. Resta aos pedestres descer da calçada e andar um trecho dentro da ciclovia. Hoje é sábado, há muitas bicicletas, é perigoso andar na ciclovia, é preciso atenção, qualquer erro pode custar caro.

Eu olho para a calçada bloqueada, olho para o carrinho do meu filho.

Não. Eu não aceito.

Eu Não Aceito - 2

Empurrando o carrinho, eu entro no flat , vou até a recepção, peço a presença do gerente e conto o que está acontecendo. “Vocês tem que tomar uma providência”, eu exijo,”isso é um absurdo”. O gerente se desculpa, claramente surpreso que alguém se dê ao trabalho de reclamar de carros na calçada em uma cidade como essa, e promete resolver o problema.

Eu empurro meu filho para fora, os carros ainda estão lá. Eu aguardo alguns minutos: nada acontece. Eu espero o manobrista aparecer na porta da garagem e lhe digo, num tom de voz que não deixa dúvidas sobre minha disposição de brigar, que ele tem que tirar os carros dali agora. “Se acontecer alguma coisa com algum pedestre, você vai ser o responsável”, eu digo, meu dedo estendido, apontando para ele.

Depois vou embora. Quando volto para casa, duas horas depois, os carros não estão mais ali; já faz três anos, e nunca mais aquele trecho de calçada ficou bloqueado.

Mas os problemas ainda são muitos: taxis, carros e caminhões de entrega param no meio da ciclovia, bloqueando-a completamente. Onibus descem a rua em alta velocidade, ameaçando os ciclistas: o que aconteceria se um deles se distraísse um momento ? (não há separação física entre a rua e a ciclovia, nada impede um ônibus de invaid-la). Ninguém liga, ninguém age, ninguém faz nada.

Nosso Estado

No dia sete de setembro, alguns anos atrás, minha mãe foi atropelada quando atravessava uma das pistas da praia de Botafogo.

Foi um grande susto. Eu recebi a noticia através de um telefonema dela, enquanto era levada por uma ambulância dos bombeiros para o Miguel Couto. O socorro foi rápido e eficiente, o atendimento médico adequado. Ela permaneceu consciente. Tivemos sorte. Então veio a hora de receber o seguro obrigatório.

O seguro obrigatório (Dpvat) é um seguro pago compulsóriamente por todos os proprietário de veículos, na ocasião do licenciamento. Ele se constitui em grande fonte de receita para as seguradoras. Só em 2006 mais de R$ 2,9 bilhões foram arrecadados com esse seguro. Esse é um dinheiro que deveria beneficiar as vitimas dos acidentes de transito.

Mas tenho certeza que muitas delas não chegam a receber nada. Veja a seguir o por que.

Nosso Estado - 2

A seguir, a lista de documentos necessários para o recebimento da indenização:

Boletim de Ocorrência ou Certidão de Ocorrência Policial (cópia autenticada)
DUT do veículo envolvido no acidente (cópia autenticada).
Bilhete de Seguro (cópia simples)
Documentação da Vítima (cópia autenticada): Identidade ou Carteira de Trabalho e Certidão de Nascimento ou Casamento, e CPF.
Comprovante de residência (conta de luz, gás ou telefone)
Documentação do(s) Beneficiário(s) (cópia autenticada): Identidade ou Carteira de Trabalho e Certidão de Nascimento ou Casamento; CPF e Comprovante de residência (conta de luz, gás ou telefone).
Procuração Particular (original)
Documentação do Procurador (cópia autenticada) - Identidade ou Carteira de Trabalho e Certidão de Nascimento ou Casamento; CPF e Comprovante de residência (conta de luz, gás ou telefone).
Estatuto ou Contrato Social da empresa, atestando os poderes dos diretores ou sócios para outorgarem procurações, em caso de procurador de pessoa jurídica.
Relatório do médico (original ou cópia autenticada)
Comprovantes originais das Despesas.
Requisições e receituários médicos (originais ou cópias autenticadas).
Procuração
Termo de Cessão de Direitos (original
Termo de Cessão de Direitos Especifico Para Entidades Hospitalares (original)

Nosso Estado - 3

A lista é longa. Alguns dos documentos são de difícil obtenção. O reconhecimento de firma tem que ser presencial, o que é difícil quando a vitima está impossibilitada de se locomover (caso da minha mãe). É necessário ir várias vezes a um local distante, esperar para ser atendido, voltar no outro dia.

A burocracia dos cartórios e da maquina pública segue regendo nossa vida, intocada. A quem interessa a dificuldade, a lentidão, a complexidade ?

Um amigo tributarista me informa que, só no Rio de Janeiro, existem milhares de instruções, entre leis, decretos e portarias, lidando com o ICMS.

Onde está a cabeça dos legisladores e administradores públicos que criam uma selva burocrática como essa ? As grandes empresas têm departamentos, com dezenas de pessoas dedicadas, somente para o cálculo e pagamento de impostos. Os médios e pequenos empresários, bem, estes que se virem sozinhos.

O labirinto legal e burocrático, que em teoria deveria ter como objetivo proteger o cidadão e garantir a arrecadação do estado e o cumprimento das leis, não faz nenhuma coisa nem outra. Sua única finalidade é proteger a existência de uma maquina administrativa ineficiente e inchada, e de bolsões que vive de vender facilidades

O Brasil Que Se Mexe


Vejam acima uma foto da Ipanema que se mexe, reaje e dá certo. Esta foto é do último domingo do feriadão. Vejam a piscina natural que se formou, onde brincam as crianças do Ipabebê, em frente à Joaquim Nabuco.

Mas, acima de tudo, reparem na areia, completamente limpa.

Isso é resultado da união dos pais e do trabalho da equipe do Ipabebê (nossa associação de pais), que não só colocou latões de lixo na areia (o que, incompreensivelmente, a Comlurb não faz) mas também, quando necessário, recolhe ela mesma o lixo que os banhistas ainda insistem em deixar na areia.

Porque a praia inteira não pode ser assim ? Porque não todas as praias ?

O Brasil tem jeito. Basta os brasileiros se mexerem.

Dia Mundial sem Cérebro

Assim foi, no Rio de Janeiro, o Dia Mundial sem Carro.

A melhor decisão que os responsáveis pela cidade conseguiram tomar foi fechar a Avenida Atlântica, como se faz nos domingos e feriados. Exceto que, como a história já mostrou, isso não dá certo nos sábados.

Resultado: Copacabana afogada em um engarrafamento monstro. Levei mais de uma hora para fazer um trajeto que faço em 20 minutos.

Na esquina de Raul Pompéia com Francisco Otaviano, o caos mostrava a qualidade dos nossos administradores urbanos.

Sabedoria Convencional

"Nós associamos verdade com conveniência, com aquilo que mais se alinha com nosso interesse próprio e bem-estar pessoal, ou que nos permite evitar esforços complicados ou mudanças em nossas vidas".

John Kenneth Galbraith, em A Sociedade Afluente, citado em Freakonomics

Ingenuidade ou Hipocrisia ?

Os valores de uma sociedade são definidos a partir das crenças individuais, dos valores e das ações dos homens e mulheres que fazem parte dela. São esses valores que serão representados pelos políticos, pelos administradores públicos, pelos homens que vão decidir o destino e os rumos do país.

Uma sociedade não pode eleger representantes melhores que ela. Isso é evidente. Uma sociedade que acha normal jogar no bicho - uma atividade ilegal que financia outras - não pode esperar que os seus representantes levem a sério o combate ao crime. Uma sociedade que, no seu dia-a-dia, se utiliza da propina para resolver entraves burocráticos e se livrar de punições legais, não tem o direito – e nem a mínima possibilidade – de exigir que seus representantes eleitos não façam o mesmo. No Brasil, a propina vai de baixo para cima, e não o contrário.

E, no entanto, a maioria das pessoas não parece perceber isso. Existem duas possíveis explicações.

Uma explicação é ingenuidade: as pessoas acreditam, realmente, que embora elas possam estacionar em qualquer lugar, jogar lixo na rua, subornar autoridades – foi só essa vez, eu estava com pressa, não teve outro jeito – todo o resto do país deveria obedecer a lei. A outra explicação, mais provável, é uma imensa hipocrisia, que domina a todos, independente de classe, educação e condição social. É o famoso jeitinho brasileiro, na verdade uma força poderosa de atraso e ignorância. É a Lei de Gérson.

É o pobre que reclama do crime, mas joga no bicho, e com isso sustenta os seus algozes. É a funcionária pública que reclama dos reajustes salariais, mas não cumpre as obrigações trabalhistas com sua empregada. É o empresário que paga suborno, para em seguida reclamar do governo.

É a hipocrisia do cidadão que compra uma carteira de estudante, e o cinismo do legislador que força o cinema a vender meia-entrada, mesmo tendo pleno conhecimento de como essa carteira é obtida. É a cara-de-pau das instituições “estudantis” que compactuam com essa farsa.

É o país do faz de conta, onde é possível, ao mesmo tempo, consumir drogas (que ainda são, independente da opinião de cada um, ilegais) e reclamar do domínio dos traficantes sobre a nossa sociedade.

O leitor escreve: O Tamanho do Estado

Um leitor (infelizmente) anônimo escreve:

O problema não está no funcionário concursado com relevante defasagem salarial, mas sim no nepotismo. Além disso, o funcionário público desconta 11 por cento de previdência do seu salário bruto, sem limite. E o particular, desconta isso? E para que serve o desconto, não é para a aposentadoria? O Judiciário está com perdas salariais diante da inflação de mais de 25%, sabia?

A maioria das serventias dos fóruns não dão água de beber para os seus funcionários, sabia? Não temos o direito de greve e nem força como os bancários. Você sabia que não temos o riocard (antigo vale transporte e nem FGTS). Só o funcionário público sabe o que passa, ao menos os do Poder judiciário, por isso essa conversa de que funcionário público nada faz é pura balela. Como dizem: Pimenta nos olhos dos outros é refresco.

Fala-se de funcionário público como se este fosse marajá. Esquecem que o gari também é funcionário público. Pergunto: Alguém com nível superior gostaria de ser gari? É, mas a fila de inscrição dava voltas nos quarteirões, repleta de advogados, engenheiros etc. A questão está no desemprego, na política perversa e não no funcionário público que ingressou mediante concurso público com dignidade e muito esforço.

Meus comentários: meu caro anônimo, alguns de seus comentários são pertinentes, outros não. Mas veja o meu post. Os meus pontos são: a máquina governamental tem excesso de pessoas (e você já apontou uma das causas: nepotismo), como consequência a maioria dos salários são muito baixos (o que você confirma), mas ainda assim, como é muita gente, depois de pagar o pessoal não sobra dinheiro para mais nada. Isso é administrar péssimamente a máquina do estado. Precisamos de um estado menor, com menos funcionários, melhor remunerados, equipados e treinados, prestando melhores serviços à sociedade.

O Leitor Escreve: O Brasileiro Não Gosta de Política ?

Comentarios do leitor Roberto L.

Democracia é complexa e desde a sua criação nas terras gregas das cidades estado, uma sociedade escravocrata, portanto, - uma incoerência? - sofreu inúmeras discussões e modificações. Mas algo não mudou. Democracia implica em PARTICIPAÇÃO. Eu confesso, não participo. Nunca participei. Mea culpa. E, absolutamente, não é característica do brasileiro participar de política. Haja visto os dois comentários propostos aqui.

Na minha rua em Jacarepaguá as pessoas se unem para fazer festa, decorar a rua em anos de Copa. E para limpar a decoração? Esta fica até a próxima competição. E o vazamento da CEDAE? Alguém sequer se dignou a ligar? Fiz parte de uma comissão de moradores para melhorar a segurança da rua. Todos reclamaram da qualidade da segurança. Quantos quiseram participar ou mesmo contribuir? Alguns "abnegados". A comissão foi dissolvida um ano depois com muitas realizações. Mas não conseguiu melhorar a PARTICIPAÇÃO dos moradores.

Estará o Brasil - e sua democracia grega e escravocrata - condenado por não conseguir obter a participação política de seus cidadãos?

Acho que concordo com o Secretário...

Meus comentários: nunca é tarde para começar a mudar essa mentalidade. Se começarmos agora, talvez daqui a uma ou duas gerações o Brasil seja um outro país. Cada pequena vitória conta. Não dá é pra ficar parado, reclamando do governo.

O Renan Que Nos Espera no Espelho

O texto abaixo foi escrito em 2005. Como cantou a Legião Urbana, mudaram as estações, nada mudou.

Estou convencido de que quem muda as coisas é a sociedade. O máximo que o governo pode fazer é não atrapalhar.

Estamos todos horrorizados com o que está acontecendo em Brasília. Entretanto, como perguntar não ofende, eu gostaria de indagar à nossa indignada população porque o povo brasileiro, que tem tanto asco destas práticas nojentas, acha muito normal:

  • Dar uma cervejinha ao guarda para se livrar de multa
  • Avançar sinal a qualquer hora
  • Dar propina na alfândega pra trazer muamba
  • Molhar a mão do fiscal para se livrar da autuação
  • Ter um emprego público e não trabalhar (existem até pessoas que são funcionários públicos no estado A e moram no estado B)
  • Adquirir substâncias entorpecentes cuja distribuição é organizada pelos mesmos criminosos que tornam a vida nas grande cidades brasileiras um inferno (pessoas inteligentes e educadas fumam sua maconhazinha e depois vão para as passeatas de protesto contra a violência)
  • Comprar porcarias na mão de camelôs e depois reclamar do caos urbano

Vamos deixar de hipocrisia. Se vivemos em um país assim, com esse congresso, é porque temos um povo da mesma categoria. Lembro que as práticas acima são, em sua maioria, características da classe média, ou seja, da elite deste país.

É este o país que construímos. É esta a herança que vamos deixar para os nossos filhos.

Para cada item da lista acima poderia ser dada uma explicação do tipo "avancei o sinal por medo de assalto", na mais pura essência da mentalidade tupinambá: arrumar uma desculpa esfarrapada para o que está errado.

O minutinho em fila dupla multiplicado por todos os que fazem igual resulta nas horas perdidas no engarrafamento .

É o mesmo comportamento acompanhando o sujeito, desde que era um cidadão comum até quando passa a ser uma otoridade. Se antes ele subornava o guarda, ele agora embolsa o mensalão. Se antes ele estacionava em fila dupla, ele agora usa carro oficial para transportar o cachorro.

Quilômetros e quilômetros de texto são gastos para analisar o que está na cara de todos e acompanha nosso povo desde sempre: o brasileiro recebe aulas ainda no berço de como não construir uma sociedade honesta e civilizada.

Temos o congresso que merecemos.

Mexa-se






Não Precisamos de Heróis

Em uma entrevista para a Veja, em 2006, o deputado Fernando Gabeira respondeu desta forma ao repórter que perguntava o que havia restado de suas convicções, depois da decepção com a esquerda no poder.

“A decisão de me apoiar em alguns princípios de atuação: a democracia... a defesa dos direitos humanos, da consciência ecológica e, finalmente, da justiça social. E caminhando por aí eu acho que posso fazer alguma coisa. Não é mais uma grande revolução, com o esplendor daqueles tempos...quando eu era jovem, queria morrer pela revolução. Agora, quero viver para transformar um pouco as coisas. Sem grandiosidade, sem melodrama. Com pequenas ações, apenas”.

Pequenas ações do dia-a-dia, passadas de pai para filho, espalhadas pela comunidade: não dirigir bêbado, não estacionar sobre a calçada, não jogar lixo no chão.

O brasileiro compra peças para o seu carro na robauto. Ele instala um ar-condicionado no escritório e não coloca um dreno, embora a água que pinga lá embaixo vá molhar a sua própria roupa amanhã. Ele dá propina para o guarda, na beira da estrada, enquanto seus próprios filhos observam do banco de trás.

Nenhuma grande revolução vai mudar este país. Nenhum movimento popular que ocupe as ruas com faixas e palavras de ordem contra a violência vai reduzir o crime ou tornar nossas autoridades mais eficientes. Nenhuma eleição vai mudar nossa situação até que os cidadãos decidem que ela precisa ser mudada. Essa mudança vai ser feita de baixo para cima, como disse o Gabeira, “com pequenas ações, apenas”.

Mas por alguma razão, o brasileiro prefere esperar por um salvador, um herói, que vai consertar tudo o que há de errado, colocar cada coisa em seu lugar, e trazer a justiça e a prosperidade ao país.

Onde está a nossa Rosa Parks ? Onde estão os homens e mulheres que, cada um a seu modo, silenciosamente, vão se recusar a ceder seus lugares, a pagar propina, a aceitar o crime em suas portas como coisa normal, e começar o movimento que mudará esse país ?

Não precisamos de heróis, não precisamos de revoluções. Não precisamos de partidos políticos cujas únicas ocupações são usufruir do poder (das piores formas possíveis) ou atacar o governo (quando não estão no poder). Não precisamos de ideologias exóticas, não precisamos de direita nem de esquerda, não precisamos de salvadores da pátria.

Precisamos tomar a rédea do nosso destino e começar a plantar as árvores que vão fazer sombra para os nossos filhos.

O Exemplo Vem de Baixo II

Às 10 horas da noite de 3 de junho de 1989 os tanques de guerra do Exercito de Libertação Popular começaram a rolas suas esteiras sobre a praça Tiananmen, em Pequim. Nos dois meses anteriores uma festa tinha tomado conta da praça, e ameaçava se espalhar por toda a China. Era uma festa celebrando a democracia, e na praça os estudantes se reuniam, cantavam, comiam e dormiam.


Às 10:30 da noite de 3 de junho tudo acabou.


O mundo nunca saberá ao certo o número de mortos, presos e desaparecidos da praça Tiananmen. O mundo provavelmente esqueceria Tiananmen, não fosse por uma foto de Jeff Widener da agência Associated Press. A foto, tirada em 5 de Junho, mostra um homem em pé, impedindo apenas com seu corpo a passagem de uma coluna de tanques de guerra. Nunca se soube ao certo o seu nome, nem o que aconteceu com ele.


Nosso mundo é moldado por homens comuns como Rosa e o desconhecido da Praça Tiananmen. As atitudes diárias, amplificadas milhares de vezes, determinam os valores e o destino das nossas sociedades.


Quem suborna um guarda de trânsito não pode se espantar com o deputado ou senador que aceita propina.


O exemplo vem de baixo.

O Exemplo Vem de Baixo

Depois de sair do seu trabalho em uma loja de departamentos no centro da cidade de Montgomery, no estado do Alabama, Rosa Parks caminhou até a Cleveland Avenue e tomou o ônibus para casa. Eram seis da tarde de uma quinta-feira, 1 de Dezembro de 1955.

Depois de pagar a passagem, ela sentou-se em um dos assentos vazios na área reservada para negros. O lugar que ela escolheu ficava na primeira fila da área segregada, e imediatamente à frente começavam os assentos exclusivos para passageiros brancos. À medida que o ônibus percorria seu trajeto, todos os lugares para brancos iam sendo ocupados. Quando o ônibus parou em frente ao Teatro Império e vários passageiros brancos embarcaram, não havia mais lugares disponíveis na seção reservada para brancos.

Em 1900 a cidade de Montgomery tinha aprovado uma lei municipal segregando os passageiros pela cor. Os motoristas receberam poderes para garantir o cumprimento da lei. Portanto, ao notar os passageiros brancos viajando em pé, o motorista parou o ônibus e se dirigiu à fileira de assentos onde Rosa estava sentada, exigindo que ela e as outras três pessoas na fileira se levantassem, cedendo seus assentos aos passageiros brancos.

Muitos anos depois, lembrando dos acontecimentos daquele dia, Rosa disse: “quando o motorista branco veio em nossa direção e fez um gesto com as mãos para que saíssemos dos nossos lugares, eu senti uma determinação cobrir meu corpo como se fosse uma manta em uma noite de inverno.”

Três pessoas cederam seus assentos. Rosa se mexeu, mas apenas para ocupar o lugar na janela. “Porque você não está se levantando ?”, perguntou o motorista.

“Eu não acho que deva levantar”, ela respondeu.

O motorista chamou a polícia, que prendeu Rosa Parks.

A atitude de Rosa marcou o início da luta pelos direitos dos negros nos Estados Unidos. Ela é considerada por muitos como a mãe do movimento moderno pelos direitos civis.

Renan Calheiros é absolvido

Por Mil Palavras


Antes que se coloquem todos os gatos no mesmo saco, vale a pena olhar a foto do Deputado Raul Jungmann, lutando com os seguranças do Senado, que tentam impedi-lo de entrar na sessão secreta que está decidindo o destino de Renan Calheiros.

O Condomínio

No Brasil todos querem ser funcionários públicos. Um funcionário público é um servidor do povo, empregado pelo estado para executar tarefas imprescindíveis para o bem-estar da população.

Acontece que no Brasil a máquina estatal é inchada, enorme. Muitos estados, municípios e órgãos públicos consomem quase toda a sua verba pagando os funcionários, e não sobra quase nada para o resto – e o resto, por exemplo, no caso dos hospitais, são medicamentos, equipamentos e a conservação das instalações – coisas essenciais para que o hospital possa funcionar bem. O resto, no caso das Secretarias de Segurança, são rádios de comunicação modernos, viaturas bem conservadas, armas e munição, instalações adequadas para delegacias, informatização do trabalho policial.

Como os funcionários são muitos, os salários não podem ser altos, senão o dinheiro não dá. Então é preciso pagar muito pouco, tão pouco que médicos e policiais, de quem a nossa vida depende, precisam acumular vários empregos para ter uma vida decente. Mas como o emprego no funcionalismo é estável, e a aposentadoria é boa (comparada com a do setor privado) o número de funcionários sempre aumenta.

Para alguns cargos públicos os salários são muito bons. Quando se acrescenta adicionais por tempo de serviço e periculosidade, gratificações de chefia e outros adicionais, eles ficam, muitas vezes, maiores que os maiores salários pagos pela iniciativa privada. Qualquer empresa que pagasse salários assim iria à falência. Melhor (ou pior) ainda, esses funcionários se aposentam recebendo como pensão um valor igual ou, às vezes, até maior do que recebiam como salário.

Os especialistas dizem que, como conseqüência disso, nosso sistema previdenciário está destinado à falência. Dentro de alguns anos não haverá mais possibilidade de pagar tantas aposentadorias, de valores tão altos, aos servidores aposentados.

O Condomínio II

Embora muito progresso tenha sido feito nessa área nos últimos anos, no Brasil a máquina estatal é inchada, enorme. O estado se mete em várias áreas em que sua presença não é necessária, e falha na maioria das áreas mais importantes sob sua responsabilidade – como saúde, educação e segurança. Com isso os gastos na manutenção da máquina estatal aumentam cada vez mais, exigindo uma carga cada vez maior de impostos.

E, no meio disso tudo, o brasileiro mantém a ilusão de que o estado é a solução dos seus problemas. “O governo deveria fazer isso, o governo deveria fazer aquilo”. Mas quando foi a última vez que você, ao precisar utilizar um serviço público (por exemplo, um hospital, uma delegacia, uma repartição municipal ou estadual) foi atendido com cortesia, rapidez e eficiência ?

Quando foi a última vez que você foi tratado com respeito, o respeito que lhe é devido pelo simples fato de que você, pagando seus impostos, paga o salário daquele funcionário do outro lado do balcão ?

Se você está com dificuldade de responder essa pergunta, você não está sozinho.

Enquanto isso, o governo continua contratando, a máquina continua inchando, e a energia e ambição dos nossos jovens – que deveria ser aproveitada para a criação de coisas novas, desenvolvimento de novos remédios, novas fontes de energia, novos softwares, para projetos ambiciosos de tecnologia que coloquem nosso país no mesmo patamar de países como a Coréia, a Índia, a China, o Chile, que se reinventaram e estão melhorando as condições de vida dos seus povos – essa energia é canalizada para passar em um concurso público e conseguir um “emprego estável”, e, já no dia seguinte, entrar em greve reivindicando a equiparação salarial com a categoria tal e tal.

Enquanto isso o mundo progride e nós vamos ficando.

Entre 1975 e 2002 a Coréia do Sul subiu da 61ª posição na lista dos maiores PIBs per capita do mundo para a 30ª posição. No mesmo período o Brasil desceu do 43º para o 56º lugar.

No Brasil, todo mundo quer ser funcionário público. Isso é mais ou menos como um prédio onde todos os moradores querem ser empregados do condomínio.

É Campeão

IPEA: Brasil é um dos líderes mundiais em gastos com previdência

Agência Brasil

RIO - O Brasil é um dos líderes no ranking mundial de despesas com previdência. A conclusão é de um estudo elaborado pelos economistas Marcelo Abi-Ramia Caetano e Rogério Boueri Miranda, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Com 12% do Produto Interno Bruto (PIB – soma de toda riqueza do país) destinados ao pagamento de aposentadorias e pensões nos setores público e privado, o Brasil ocupa o 14º lugar entre os 113 países que têm despesas previdenciárias consideradas altas.

- Embora a Previdência pague pouco aos aposentados, e a situação não seja boa para quem recebe, mesmo assim nós gastamos muito mais do que deveríamos com previdência - disse Rogério Boueri Miranda.

No estudo, cinco pontos analisados pelos dois economistas do Ipea confirmam que as despesas previdenciárias no Brasil estão acima do desejável, e indicam que o Brasil deveria gastar menos com previdência.

Eles se referem à dependência demográfica, ao quociente entre a população idosa e as pessoas na faixa etária entre 15 e 64 anos; à relação entre aposentadoria e renda per capita; à participação dos contribuintes na força de trabalho; às alíquotas de contribuição; e às idades mínimas requeridas para aposentadoria.

Os cinco pontos em conjunto permitem construir um indicador de gasto previdenciário, e posicionam o Brasil no grupo de nações líderes em despesa com previdência, ao lado da Áustria e Uruguai, que possuem uma pesada carga fiscal nessa área.

Rogério Boueri Miranda explicou que países como a Itália, Polônia e Cuba apresentam gastos superiores aos do Brasil com a previdência. E que na Itália, por exemplo, esses gastos atingem quase 18% do PIB.

Boueri observou que pelas características demográficas da Itália, o país pode gastar mais que o Brasil.

- É isso que nós estamos querendo dizer nesse estudo: o Brasil gasta muito mais do que as variáveis demográficas dele permitiriam - disse.

A conclusão do economista do Ipea é de que os países que gastam acima do Brasil em proporção ao PIB têm condições financeiras e demográficas de gastar mais.

- O Brasil, para as condições que ele tem, gasta muito - disse.

O trabalho mostra ainda que nações com dimensões demográficas semelhantes às do Brasil, como os Estados Unidos, têm despesas previdenciárias proporcionalmente menores que as brasileiras, inferiores a 8% do PIB.

- Os Estados Unidos, ainda por cima, têm outras condições melhores para alavancar o gasto deles com gente. Eles têm mais dinheiro - apontou Boueri Miranda.

O estudo também revela que, na comparação com os outros países, essas variáveis indicam que o Brasil é a única nação da amostra que está fora do "padrão internacional”. Por se tratar de um país jovem, com 9,1% de dependência demográfica (relação entre a população de mais de 65 anos sobre a população em idade ativa), “a previdência repõe boa parte da renda, a cobertura e as alíquotas previdenciárias são altas, e o regime previdenciário ainda não conta com uma idade mínima para aposentadoria”.

O trabalho dos economistas do Ipea está disponibilizado no site do órgão da Secretaria de Planejamento de Longo Prazo da Presidência da República, no endereço www.ipea.gov.br.

O Estado Devorador

Artigo do Mailson da Nóbrega para o blog do Noblat:

Carga tributária: o combate errado

A onda contra a prorrogação da CPMF é positiva. Reflete a conscientização sobre os males da excessiva, caótica, ineficiente e injusta carga tributária, cuja redução geral também se reivindica. A Associação Comercial de São Paulo criou o impostometro (www.impostometro.com.br), que mostra os tributos pagos, em tempo real. Apesar de seu mérito, essas iniciativas miram o alvo errado. Os vilões são a despesa pública e sua rigidez.

A rigidez orçamentária é uma das más conseqüências da Constituição de 1988, que ampliou a vinculação de receitas a despesas e elevou substancialmente os gastos de pessoal e de previdência. As aposentadorias e outros benefícios sociais ficaram vinculados ao salário mínimo, que reajusta dois de cada três desses benefícios.

Nos seus oito anos, FHC aumentou em 42% o valor real do mínimo. Lula concedeu mais 36,5% só no primeiro mandato. Desde o Plano Real, o mínimo dobrou em termos reais, o que também duplicou o valor real da maioria das aposentadorias. Dificilmente isso aconteceu em outro lugar. Somadas as generosas aposentadorias dos servidores públicos, somos o único país onde o rendimento médio dos aposentados é superior ao dos que estão em atividade.

Essa desastrosa trajetória fiscal piorou a avaliação de risco do Brasil, contribuindo para as altas taxas de juros, para a expansão da dívida pública e para elevar a rigidez orçamentária. A carga tributária adquiriu sua péssima qualidade porque precisou subir para financiar a farra. A carga correspondia a 22% do PIB em 1987 e não parou de subir desde então (34,2% do PIB em 2006).

Em 2006, os gastos obrigatórios da União, inclusive juros, consumiram 92% da receita. Há, porém, despesas que, embora teoricamente passíveis de controle, se referem a itens que na prática são compulsórios, como a conservação mínima de estradas, o cumprimento de sentenças judiciais, os programas sociais, o custeio dos três poderes e assim por diante. A margem efetiva de manobra é de apenas 4% da receita.

Voltemos à CPMF. A proposta orçamentária de 2008 prevê arrecadação de R$ 39 bilhões, correspondentes a 6,3% da receita de impostos e contribuições. Se a contribuição não for prorrogada, o governo não terá como compensar a perda, ainda que suspenda todos os gastos que de fato controla. A saída será reduzir o superávit primário, o que não seria nada recomendável nestes momentos de turbulência financeira mundial.

Na verdade, o atual governo tem sua parcela de responsabilidade por essa situação calamitosa. Nunca neste país o Poder Executivo teve a iniciativa de ampliar tanto as despesas correntes, particularmente as relativas a pessoal e aposentadorias,. Além do impacto da elevação real do salário mínimo, que terão prosseguimento nos próximos anos, a proposta orçamentária para 2008 prevê a contratação ou efetivação de 56 mil servidores. A folha terá um aumento nominal de quase 11%.

Desde 1985, estamos em trajetória de completa insensatez fiscal. Cada governo gasta mais do que seu antecessor. Nos períodos de Sarney, Collor e Itamar, as principais causas foram os impactos da irresponsabilidade dos constituintes. Nos governos FHC e Lula, a origem básica foi a expansão dos gastos sociais e o aumento do salário mínimo. Lula caminha para deixar o pior legado de todos. Ai de nós se for preciso fazer um forte ajuste fiscal para enfrentar efeitos de uma crise externa.

A prorrogação da CPMF será uma imposição da realidade, infelizmente. Os ganhos de arrecadação dos últimos anos, fruto da elevação de tributos e da maior formalização da economia, poderia tornar dispensável a medida, mas Lula preencheu essa folga com gastos obrigatórios, grande parte de escassa justificativa.

A insatisfação com esse quadro lamentável deveria gerar um movimento para atacar a despesa, particularmente os gastos obrigatórios. Necessitamos de um programa fiscal de longo prazo, ancorado em reformas estruturais, para promover a queda gradativa dos gastos, o que permitiria a diminuição da carga tributária e a elevação dos investimentos. Nesse contexto, a CPMF poderia iniciar uma trajetória rumo à sua completa extinção. Não ficaria nem para fins de fiscalização.

Ser contra a CPMF é atacar o efeito e não a causa da nossa grave situação fiscal, que pode nos cobrar um preço alto no futuro.

Mailson da Nóbrega é ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria Integrada (e-mail: mnobrega@tendencias.com.br)

O Queijo do Inferno


Na foto acima, tirada hoje, na praia de Ipanema, em frente à Joaquim Nabuco, um vendedor do queijo do inferno, sentado calmamente, enquanto seu forninho cheio de brasas descansa na areia, à espera de um banhista descuidado

Reparem nas crianças ao redor.

JB Olhar Carioca:Uma sociedade suicida

Texto da coluna Olhar Carioca do JB de hoje, por Alfredo Sirkis.

Os chefes dos atentados praticados, no início do ano, no Rio - entre os
quais o do ônibus com passageiros queimados vivos - bem como os assassinos de Tim Lopes estão solicitando o benefício de regime semi-aberto através de seus advogados. Um dos matadores do repórter já o obteve e já fugiu, pronto para matar de novo. No ano passado, dos 342 detentos em regime semi-aberto nada menos de 190 se escafederam... A Vara de Execuções Penais recusa-se a cumprir a lei 11464/07 que tornou a famigerada “progressão de pena” mais difícil exigindo para os reincidentes três quintos da sentença cumpridos e para os “primários” (ainda que assassinos) dois quintos, em lugar de um sexto. Ela interpreta que os condenados, antes da nova lei, teriam “direito adquirido” à progressão com um sexto da pena. Isso mesmo: quem ordenou a queima de ônibus ou trucidou, esquartejou e carbonizou um repórter em missão profissional tem “direito adquirido” a pleitear sua liberdade para provável fuga e novos crimes depois de três ou quatro anos de prisão.

(...) É evidente que há bons argumentos jurídicos para questionar esse “direito adquirido”. Não houve uma mudança das penas propriamente ditas instituindo novas que constitucionalmente não pudessem retroagir em relação a delitos praticados antes de sua vigência. Apenas alterou-se o critério de atribuição de regalias vinculadas à execução dessas mesmas sentenças. O judiciário tem que fazer valer esta distinção sob o risco de uma decomposição radical do tecido social atestando a falência completa do estado de direito. A conseqüência será um impulso em massa à autodefesa e à prática da justiça com as próprias mãos.

Somos uma sociedade suicida. Nenhuma civilização pode coexistir com tanto desrespeito pelas vítimas nem tamanha insegurança gerada pelo risco dos assassinos voltarem a praticar os mesmos crimes amparados por uma estrutural legal e burocrática que inverte os mais elementares valores do convívio humano.

Nossa sociedade cultua o faz-de-conta. Temos prisões de quinto mundo, a pena de morte é aplicada, de fato, sem julgamento, todo santo dia, a tortura continua sendo uma realidade corriqueira mas nos ufanamos de leis e mecanismos jurídicos tão “liberais” que fazem de qualquer facínora uma pobre vítima da sociedade cuja compensação ou (improvável) recuperação assume prioridade em relação à proteção das pessoas de bem e de suas famílias.


Parabéns ao Sirkis. Você diz o que precisa ser dito. Uma justiça que não reflete as aspirações nem garante a segurança da sociedade está falida.

A Lei do Xixi

Há dois anos chegamos cedo na praia, meu filho e eu, e nos deparamos com uma cena trágica. Virado na pista que aos domingos é reservada para pedestres, um carro retorcido. Um guarda nos contou o ocorrido: um senhor havia feito sua caminhada matinal, e lia um jornal, sentado no carro. Uma caminhonete fez a curva da Joaquim Nabuco em alta velocidade, desgovernou-se e atingiu-o em cheio. A pancada foi tão violenta que o carro voou e arrancou um coqueiro pela raiz. O senhor morreu na hora. O jovem motorista da caminhonete saiu ileso.

É preciso dizer que ele estava embriagado ?

Tivesse o acidente ocorrido duas horas mais tarde e muita gente teria morrido. O carro caiu justamente no lugar onde as crianças costumam brincar.

No Brasil morrem, todos os anos, mais de 50.000 pessoas em acidentes de trânsito.

Cinquenta mil.

Esse número é maior que o de soldados americanos mortos em toda a Guerra do Vietnã.

É o equivalente a duzentos desastres aéreos por ano, cada um com um jumbo lotado, em que não há sobreviventes.

Mas a culpa é da polícia, que não fiscaliza, da justiça, que não condena os infratores, dos parlamentares, que não fazem as leis necessárias.

Eu tenho um prazer perverso quando a discussão chega nesse tópico. Eu gosto porque sempre consigo deixar todo mundo em silêncio. É quase covardia. Eu tenho uma pergunta infalível.

Quando todos começam a reclamar da justiça e da polícia eu faço a minha pergunta.

Quem aqui nunca tentou subornar um guarda para não levar uma multa ?

A reação mais comum é o silêncio e um sorriso meio sem jeito. Alguns ainda tentam uma ou outra explicação. Outros, poucos, percebem a gravidade do problema e olham para o lado ou para baixo.

Aí eu digo: eu nunca subornei ninguém. Não porque seja moralmente superior, ou porque tenha tido uma educação melhor que a dos outros. É simplesmente uma questão de inteligência. Eu sempre pensei: se o guarda aceita um suborno meu – cinqüenta reais para tirar a multa – porque não aceitará o suborno de um marginal perigoso – cinco mil reais para deixá-lo ir embora ?

Subornar é sabotar o futuro dos nossos filhos. É retocar a chapa de raio-X para que a imagem fique com aparência de saudável.

É esse guarda, subornável por cinqüenta reais, que vai cuidar da sua segurança ?

O que será do guarda honesto, que tem que sobreviver com seu salário ?

É um exemplo perfeito da lei do xixi na piscina: se só uma pessoa fizer, não tem problema. Mas se um faz, todos fazem, e acabam todos nadando em urina.

A Guerra do Quejo II

O Ricardo Noblat, do Globo, reproduziu em seu blog nosso post sobre a Guerra do Queijo de Coalho. Segue o link:

http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_Post=72127&a=111

Obrigado Noblat !

A Guerra do Queijo de Coalho

Eu sou o general e único soldado de uma guerra particular, que eu mesmo declarei e que acontece todo final de semana. O campo de batalha é o trecho de praia em frente à rua Joaquim Nabuco, em Ipanema, onde vamos desde que meu filho nasceu. De um lado estou eu e meu exército de um homem só. Do outro, os vendedores de queijo coalho.

Acho absurdo que alguém carregue, no meio da multidão na praia, um forno de metal cheio de carvão em brasa. Basta olhar o espaço apertado para concluir que, em algum momento, alguém vai esbarrar no metal e se queimar. Enquanto o vendedor atende aos seus clientes, o forno do inferno fica espetado na areia. Em torno dele circulam inocentes banhistas, que jamais poderiam imaginar que, ali ao lado, está um pedaço de metal incandescente.

Eu insisto em expulsar os vendedores de queijo coalho do nosso território. “Aqui está cheio de crianças, minha senhora”, eu digo. “Olhe ao seu redor meu amigo, o senhor não pode colocar essa coisa cheia de brasas aqui”. São dez, quinze batalhas por dia. Eles me dão olhares hostis, fazem ameaças veladas.

No início de Janeiro de 2007, no nosso pedaço de areia, uma criança queimou seu braço em um desses fornos. O vendedor de queijo, solícito, recomendou mergulhar o braço da criança na água do mar.

Minha luta é inglória. Luto sozinho. A maioria dos outros pais é consumidora do queijo do inferno, enquanto suas crianças correm ao lado das latas cheias de brasas. No final do dia eu passo recolhendo os espetos de madeira largados na areia, alguns enterrados com a ponta afiada para cima, como armadilhas de uma guerrilha na selva.

Armadilhas contra nossas crianças.

Ninguém percebe. Ninguém liga.